Comemoração do DIA DE PORTUGAL, DE CAMÕES e DAS COMUNIDADES PORTUGUESAS no Ceará.
Maria Beatriz Rosário de Alcântara (*)
Felizes aqueles que, como Ulisses, fizeram uma grande viagem e ao retornarem encontraram boa acolhida.
Meus irmãos e eu fizemos uma grande viagem, ainda muito pequenos saímos do Brasil e fomos morar em Portugal, com nossos Avós tão queridos, Maria Augusta da Fonseca Rosário e José Augusto Rosário Dias, os dois oriundos da pequena aldeia serrana da Benfeita, concelho de Arganil, mas naquela ocasião já a residir em Lisboa.
Infância alegre, acarinhada por todos da família. Em julho, férias na Costa da Caparica, agosto e setembro temporada entre as matas de pinheiro bravo e carvalhas, sob os encantos lúdicos do rio Alva e a brandura salutar no convívio com parentes e amigos na vila de Arganil. Felicidade!
Quero as vinhas avermelhadas
o sino no campanário a tocar casamento
a doidinha de Avô a meter medo
as brincadeiras no Jardim Condessa das Canas.
Quero as andorinhas voando rasteiras
na tarde abafada e rubra
o cheiro forte da mata
a sopa de feijão-verde a fumegar.
Quero o milho-rei na desfolhada
mergulhos no rio Alva
a casa do Sapatinho cheia
com risos no espelho de Veneza.
Quero a Feira do Mont’Alto
as músicas do Zé Carlos ao piano
o cheiro de terra úmida
nas comédias da cave das batatas.
Quero ainda as náuseas na aurora
sobre óleo de rícino com café,
mas quero não menos,
amar no amanhã os vestígios do presente.
Em outubro regressávamos todos a Lisboa. Havia estudos para a miudagem e trabalho para os chefes da família. Morávamos num bairro inteiramente novo, enfoque e conceito arquitetônico diferentes, um espaço acabado de ser construído, o Arieiro, e nós os Rosários, como uns dos primeiros moradores da Praça João do Rio.
Meu pai querido e saudoso, José da Fonseca Rosário Dias, queria-nos, seus pais e filhos, no melhor da vanguarda daqueles tempos. Vivência de dias encantadores!
Versos não me cansam de chegar, junto a lágrimas, em cada visita melancólica que por aqueles lugares eu faço, ainda hoje, em toda viagem a Portugal.
Poetas errantes
I
Pedras portuguesas
passos outros no passado
Praça João do Rio
árvores e bancos
chafariz e fonte
visão presente
guardado no jamais
prazer envolto em dor.
Do ontem completo
permanecem vestígios
a Pastelaria Anabela
hoje com almoços rápidos,
no prédio cinco, no segundo direito
as janelas todas cerradas
já não mostram os de lá de dentro
à espera da volta dos meninos
pastas nas mãos vindo da escola,
mas o banco do salgueiro
esse sim, permanece cúmplice,
mantém a mesma sombra
permite leitura, conversas,
estudos ou livre imaginação.
Lágrimas,
saudades escorrem quentes
pelo rosto andeiro,
um corvo entre pombos
penso assim em mim,
súbito, revoam todos os pássaros
pudesse eu voltar
jamais teria seguido viagem
para aos outros não ser estranha
na fala, no vestir, na forma de pensar
às gentes que sinto minhas
de minha raiz.
II
Tarde quente,
o vento levanta-se
varre as folhas
arrasta um arrepio
sob um sol a permanecer
Insistente na brandura.
Apercebo-me dos versos
“alma minha gentil, que te partiste”
mas tolice, a praça pertence
a outro poeta, João do Rio,
morada de um vivo e bom poeta
Manuel Alegre, com poema mais além
numa pedra cinza do jardim e,
depois dos dois, eu, a desconhecida.
Naqueles jardins muito aprendi,
livros e revistas emprestados
à Biblioteca Jardim da Praça,
pulos ritmados de corda e macaca
num céu amarelo de pedrinhas,
brincadeiras, bulhas e quedas de patins,
“pico, pico, maçarico
quem te deu tamanho bico”
correrias imediatas a dar ao pé.
Nos santos populares, festejava-se
Sto. Antonio em altar com degraus,
São João lançávamos fogos da varanda
a São Pedro, arribávamos
todos nós miúdos em férias.
O vento afasta o sol
rosto e mãos esfriam
reparo que criei crostas
por sobre feridas e perdas
julgadas e tidas como cicatrizes.
Triste fado de quem cuida regressar
longe do afeto na família que se foi
reconhece serem outras suas diretrizes,
isolamento consolidado por tempo e distância,
que nem à saudade se permite mais alcançar.
Um dia decidi: vou ao Brasil ! E não vai passar desse ano. Era o fim do ano de 1963.
Coração acelerado, cheguei a Fortaleza. Encantamento por sobre cada encanto! Cidade inteiramente plana, dois ou três prédios altos no Centro, calor ameno, brisa suave, pessoas acolhedoras, música envolvente, frutas de perfume e sabor incalculável, árvores frondosas de sombra macia, céu quase sempre azul, águas do mar mornas, areias brancas e finas, gente sorridente e descomplicada, casas brancas pitorescas, peixe fresco todo fim de tarde nas jangadas da praia, luaradas de jovens pela lua cheia à beira do mar, tertúlias semanais nos elegantes clubes sociais, digo-lhes, Senhoras e Senhores, um sonho tropical impossível de ser imaginado por uma jovem de hábitos severos lisboetas, ainda que muito sonhadora.
Não voltarei, está decidido, aqui vai ser minha nova morada! Vou estudar, fazer uma carreira, ensinar e viver para a Literatura. Entrei no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará. Meu Pai não gostou da escolha, como podes teres estudado tanto e apenas vir a ser professora? Fui ser professora, sim, e fui imensamente feliz!
O tempo do amor chegou, casei-me com o jovem médico Lúcio Gonçalo de Alcântara e com ele construímos uma família de harmonia. Vieram dois filhos, Maria Daniela Rosário de Alcântara e Leonardo Rosário de Alcântara, os meus dois meninos, meu encanto maior, orgulho e fortuna.
A política entrou na nossa casa e dela não vou falar, porque não consigo entendê-la e nem me veio trazer momentos felizes. Contudo, da minha união com a família Alcântara só tenho a lembrar vivências completas de concórdia e querer bem. Aprendi a reconhecer e viver dentro dos usos e costumes cearenses, a interpretar a sabedoria das pessoas simples do interior, aceitando o sentido das coisas fortes da terra seca. O sertão me foi herdado.
Terra de aboio
Cai o calor e a tarde,
o homem do alto do cavalo
solta o canto
arrodeia e tange o gado
refazendo o caminho
de areia batida
seixos
cercas
garranchos
e mandacarus.
O homem alteia o aboio
o gado satisfeito geme,
caminho de respostas
sob céu sem nuvens.
Na passagem da manada
pedras e rochas estremecem,
acorre o vaqueiro a galope
porteira
sombra do jatobá
casa branca
telhado escuro.
O aboio
cada vez mais forte
anuncia a chegada.
Os olhares se cruzam no alpendre
a comitiva segue
quintal adentro
tamarineira
cercado de cabras
ciscado de galo e galinhas
tudo atento à boiada.
Nova porteira
boio curto
curral
o homem e seu cavalo
recolhem os mugidos
e a tarde fugidia
atenta à chegada da escuridão
permite o silêncio
o sino
o toque dos anjos
agasalhando devoção.
Senhoras e Senhores, não pretendo mais alongar-me nesses minutos que foram concedidos.
Minhas palavras finais da noite dirigem-se, primeiramente, para felicitar nosso ilustre ex-consul honorário de Portugal no Ceará, Dr. Carlos Pimentel, a quem a comunidade lusa do Ceará tanto deve pela atividade exercida com empenho e que hoje comigo divide a tão significativa homenagem a nós concedida pela Comunidade Portuguesa no Ceará.
Em seguida, desejo agradecer a todas as mulheres valorosas e fortes com quem convivi no meu trajeto de vida e que se ensinaram, pelo exemplo de conduta determinada, a mestria de ter nas mãos seu próprio destino, modelos salutares que procurei seguir, cabeça erguida (aqui e ali um pouco mais baixa), mas sempre convicta do caminho que tracei para seguir vida afora, tentando muito. muito e muito, não perder a ternura, nem fugir à emoção, segurando firme o entendimento, o carinho pela humanidade e a gratidão pelo bem recebido.
Bem haja a todos, no dia da Pátria de Camões e das Comunidades Portuguesas no ano de 2009, ocasião em que é conferido pelos mais altos representantes locais da Comunidade Portuguesa o I Troféu Martim Soares Moreno, em reconhecimento a trajetórias pessoais voltadas para o estreitamento das relações entre o povo, a cultura e os negócios do Brasil e Portugal, representado no marcante trabalho artístico levado a efeito pela talentosa artista Emília Porto, como eu, uma luso descendente e brasileira amiga das nossas duas pátrias.
Boa noite e muito obrigada!
(*) Este discurso foi proferido pela escritora e professora Drª Maria Beatriz Alcântara, no decorrer das manifestações do dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Fortaleza.