Arquivo de Janeiro 2013

Rês ligeira, vaqueiro bem montado

Janeiro 31, 2013

Por Nilto Maciel

Imagem para artigo de Nilton Maciel

Imprimi uma relação de nomes e pus a folha sobre a mesa. Só de estudantes que me visitam com frequência ou participam das aulas em minha oficina. Precisava de três deles para um serviço: ler três publicações novas de prosa de ficção. De olhos fechados, apontei o dedo para os nomes. O primeiro escolhido foi Luciano de Barros, a quem coube Entre o elevador e a praça, de Fáttima Britto. A Camila Peçanha ofereci A arte de afinar o silêncio, de Mariel Reis. Para Simone Farias reservei A menina das flores, de Arine de Mello Jr. Eles sabiam o que fazer: ler, com olho crítico, e, em dia com eles marcado, comentar comigo as obras lidas. Ontem se realizou a sabatina. Chegaram cedo, logo após o almoço. Eu examinava a primeira edição de Mundinha Panchico e o resto do pessoal, de Juarez Barroso. O rapaz se interessou pelo impresso: “Já li e ouvi comentários a ele, mas nunca o vi”. Podia levar, se quisesse. Porém, devolvesse logo, que tenho muito ciúme das minhas pérolas. Camila quis se exibir: “Um dos melhores contistas cearenses do século XX. Não é verdade, professor?” Dei opinião: Um dos melhores contistas brasileiros. Simone não quis ficar para trás: “Melhor do que este aí é Joaquinho Gato. Virou-se para mim, em busca de aprovação: “Ou não é?” Dei resposta vaga.  Deveríamos nos dedicar aos escritores do dia.

Dei a palavra ao jovem e me ajeitei na cadeira de balanço. Começou a exposição pela ausência de diálogos em Fáttima Britto. “Não se vê um travessão. Também não encontrei aspas e, muito menos, verbos declarativos”. Lembrei-lhe o início de “Voz de soltura” (sem travessão, sem aspas, sem verbos de elocução): “Cala a boca, filho da puta, que eu não nasci pra escutar desaforo de filhinho de papai cheirando a leite de mamãe. É isso aí, ô panaca, você foi pego”. E opinei: “A prosa de Fáttima segue uma linha nova (talvez não tão nova assim) da arte literária. Evita os cacoetes herdados da novelística mais antiga e, especialmente, do século XIX, excessivamente descritiva e repleta de lero-lero”.

Passados uns vinte minutos, interrompi o discurso de Luciano. Necessitava ouvir Camila Peçanha e vê-la folhear o caderninho de apontamentos. “Também fiz algumas observações a esse respeito, quer dizer, a respeito de conversação de personagens. Mariel segue rumo diverso do percorrido por Fáttima, pois, embora não use os antiquados travessões, ainda chama a atenção do leitor para as vozes dos seres fictícios, com aspas e verbos dicendi. Como em “A mensagem”. Um trecho: “Gritava: ‘Aparece, filho da puta, aparece pra ver’. A advertência dizia: ‘Maurinho, de hoje você não passa’”. (Aqui são usadas aspas simples, porque entre aspas duplas).

A preocupação de Luciano e Camila com aspectos secundários da dicção dos contistas me deixava inquieto. Fazia-se indispensável analisar a maneira de dizer de cada um, de modo mais abrangente. Deixei a exibida menina divagar por mais uns minutos, até me exasperar: “Agora é a vez de Simone”. O rapaz se encolheu no sofá, como se a ele eu tivesse me dirigido. A protegida de Batista de Lima não se mostrou intimidada. Fechou o caderninho e fez deslizar a rubra língua nos escarlates lábios. Senti um calafrio, mas me contive: “Simone, fique à vontade”. Levantou a capa: “Vejam a dedicatória do autor: ‘Com admiração ao grande Nilto Maciel, neste meu livro, a saga de Leontina e seu cão Alfredo. Do amigo e leitor Arine de Mello Jr’. Muito chique”. Impossível não persistir no tema da cavaqueira (vozes) em ficção. Pois Caio Porfírio Carneiro, um dos mestres do conto brasileiro, assim se manifesta nas primeiras linhas da apresentação: “A originalidade primeira deste livro nasce no plano formal. Quase todo o texto é transposto para o campo das falas. O descritivo é mínimo, e o narrativo se processa e segue em dialogação continuada”.

Depois de meia hora de lengalenga, bati palmas e fiz o convite mais esperado de minhas aulas: “Vamos merendar?” Os três se alegraram. Chamei Alice, ao vê-la de relance entre a cozinha e a sala de refeições. “Que temos hoje?” “Torta de marmelada e sucos de pêra e melancia”. Sentamo-nos à mesa. Simone tornou a se exprimir: “Não sei se disse: A menina das flores é romance”. Atulhamo-nos de bolo durante uns quinze minutos, ora calados, ora em breves dizeres: “Está uma delícia”; “Quem fez?”; “Alice, você tem mãos de fada”. De regresso à sala de conversação, encontrei Juarez Barroso a nos espiar. Tive a impressão de entrever um risinho de galhofa no canto da página.

Voltemos aos convidados de hoje. “Luciano, fale mais das composições de Fáttima Britto”. O jovem deixou de lado o colóquio e alcançou o assunto dos relatos: “As criaturas de O elevador e a praça são gente de hoje, da cidade grande, da metrópole. Trabalhadores e vagabundos ou excluídos da sociedade. Os chamados cachorros miúdos, os vira-latas. Seus sofrimentos, seus vícios, seus dramas individuais, associados aos grandes dramas sociais. Passadores de maconha e crack, putas finas, velhinhos safados, entes em solidão, sofridos”. Pedi-lhe o volume e li, como ilustração: “Um dia dei-lhe um tapa. Saiu seco, cortando meus olhos vermelhos de erva. Logo no dia da erva? Não combinava. Erva na combinava com bater em velho indefeso, meio meu pai, meio meu vô, meio meu amigo, meio meu filho, meio meu amante meio meu eu meio”. Fiz uma pausa: “Realismo puro, porém sem o uso do dialeto chulo de alguns prosadores de hoje”.

Observei os números do relógio. Obrigava-me a dar a palavra a Camila. “Tem meia hora para arrasar Mariel Reis. Ou para colocá-lo no pedestal dos grandes contistas”. Riu: “Seguirei o conselho de meu professor Batista de Lima”. Passou as folhas de Arte de afinar o silêncio. “E qual é o conselho dele?” “O senhor sabe”. “Pois então o siga”. E se pôs a gesticular: “A coleção de Mariel pode ser vista como um polígono regular de muitos lados. Talvez um icoságono. Suas tragédias têm formas diversas e tratam de temas variados. Vai ao morro carioca (realismo urbano), recorda a infância e a adolescência (de personagens), chafurda no cotidiano das pessoas simples. Ora semelham crônicas (“O santo”), ora são recriações de vultos da nossa literatura (Lima Barreto, Marques Rebelo) e da estrangeira (Francis Ponge, Eliot, Valéry, Rimbaud), ora tramas de variadas acepções (“Meu tio, o encantado”). Escritor multívago e competente”.

A tarde descambava no horizonte. (Se era assim, não sei, pois, da sala onde estávamos, eu só via a fachada de um edifício de 15 andares). Apressei Camila e convoquei Simone a se pronunciar. Fosse concisa. E foi: “O romance de Arine é do tipo descritivo-narrativo, entremeado de longas conversas. O primeiro a aparecer é Juvenal. Na verdade, apenas o corpo ou o cadáver. O segundo é o delegado Juca Rato. O terceiro é Leontina, a viúva. O palco da cena é um cemitério. E assim vai o narrador enredando (engolindo) o leitor, feito cobra. A linguagem (e não apenas a dos diálogos) se apresenta de forma rudimentar, arremedo da expressão plebeia dos brasileiros. Com todas as trivialidades da conversação de rua. Isto é bom para a preservação da língua. Além do mais, qualquer leitor (ou ouvinte) entenderá a história. Não há firulas de estilo”.

Não dispúnhamos de mais tempo. Sobre a mesinha, Juarez Barroso me fez lembrar (não sei explicar a razão disso) “Joaquim Bralhador”, uma das mais belas páginas da literatura brasileira: “Não tem rês ligeira para vaqueiro bom e bem montado”. Não recitei a frase; apenas avisei: “Por hoje é só”. Simone fez correr a língua ardente (como saberei disso?) nos lábios de mel (devem ser doces como os de Iracema) e me pareceu insatisfeita.

Hélio Pólvora no Mar de Azov

Janeiro 30, 2013

Por Cyro de Mattos

O baiano  Hélio Pólvora conquistou com O grito da perdiz o Prêmio  Bienal  Nestlé de Literatura  Brasileira,  na categoria de contos,   em 1982. No mesmo concurso foi   agraciado  pela segunda vez com Mar de Azov, em  1986. Assim como  no primeiro livro premiado,  Mar de Azov  é   constituído de quatro narrativas, que se desenvolvem no Sul da Bahia. São  quatro narrativas da melhor literatura:  “Mar de Azov”,”Zepelins”,  “Começo de Vida” e “As Dríades”. Hélio Pólvora nos dá mais uma vez, nestes contos,  uma amostragem do contista moderno dotado de amplos recursos narrativos,  sensibilidade apurada  e imaginação privilegiada. Tanto no conto  sertanista,  rural ou urbano, como na narrativa que deflagra  os abismos da condição humana,  Hélio Pólvora vem executando  com  suficiência  o conto  em extensão e, ao mesmo tempo, profundo.  De seu estilo impressionista escorrem as verdades essenciais do ser,  filtradas  das correntes subterrâneas,  solidões e  desencontros,  por vias e arredios das  perplexidades.

É  visível que a  vocação desse  contista inclina-se  com intenções de recolher e transformar na arte genuína do conto  as impressões que a vida propõe nos momentos habitados por  vozes  agudas. O  tema assim delineado  exige  desdobramento ficcional porque seu tempo narrativo será  alimentado por uma sensibilidade arguta,  imaginação que abrange  variações criativas e brilhantes. O texto deve ser   por isso mesmo  disposto, justaposto, superposto pelo acúmulo de planos,  desenvolvido com nuances, fragmentado no tempo,  recheado de impressões  quanto mais investigadoras do outro e o mundo.   Plasmado  por uma técnica especial, que se compraz  quanto mais espraia por todos os lados a  sua busca da imagem plena.  O contista baiano  está sempre à vontade quando manipula forma e fundo   dentro da  unidade essencial,  resultante de análises e psicologias.

O factual que serve de motivação ao autor do conto curto, produzido com  rapidez decorrente dos  flagrantes da vida, não atrai o autor de Mar de Azov. Não motiva com predominância  suas criações urdidas com engenho e arte.  Consciente de  compromisso existencial de   escritor e ficcionista,  a força criadora do discurso  basta-se em extensão irmanada com a compreensão. Mostra-se, na escrita de  envolvimentos  emotivos, com o  lírico e o dramático, o onírico e o  representativo do ser,  ritmada nos rumos muitas vezes  contrastantes  dos  personagens.

Desde que escreveu o conto “Os Galos da Aurora”, imbatível história de bicho em nossas letras, até hoje o contista deixou  claro que não se sente à vontade na concepção e execução do conto curto. Distante está assim  de um Dalton Trevisan, outro contista de primeira linha  de nossas letras, adepto contumaz do conto breve,   sempre a expor  o drama em síntese, recriado no mínimo espaço do acontecimento extraído do  real. O elogio de personagens repetitivas  realiza-se com o contista curitibano  nos  desastres cotidianos da comédia.   Hélio Pólvora está também distante de O. Henry,  um dos mais populares contistas dos Estados Unidos,  que escreveu mais de trezentos contos durante o período de dez anos, com vistas ao registro de  flagrantes da vida cotidiana de Nova Iorque,  com seus tipos e dramas. O. Henry tornou-se em pouco tempo um contista do gosto popular, que funciona  na escrita  prazerosa armada com habilidade para atrair o leitor.  Propõe o enredo curto,  sem descrições, impressões e devaneios, embutido no acontecimento que corresponde ao registro de um incidente da realidade circunstante.

Hélio Pólvora,  nos atritos extremos das solidões,  desencontros dos seres em aflição,  incursões  e questionamentos acerca de nossa condição contraditória,   com seus contos que acontecem no Sul da Bahia,  exerce o que a crítica costuma chamar de regionalismo de espírito. Demonstra essa feição   nos três primeiros contos  de  Mar de Azov .

No conto que dá título ao livro, salta aos olhos que a sequência de imagens, metáforas  e alusões poéticas preenchem o cenário desse seu  tom íntimo, emotivo, transfigurador da paisagem circundante  em conexão sensitiva com a paisagem  interior dos personagens, imersos nas águas da memória e do curso do tempo, que flutua e desliza  no presente e passado. Se uma paisagem marinha lá fora bate,  volta, bate, despejando seus rolos de algodão na praia,  já outra,em sintonia com a zona interior do personagem,  derrama suas ondas de sofrimento nos recônditos da alma. Impõe  seu timbre  diante da impotência de se reverter o drama, em nível sofrido,  de outras águas em permanentes conflitos.

O contista refere-se a um mar que  existe lá fora não como adorno no exercício luminoso do estético. Ele recorre ao cenário que ressoa lá fora  como  um elemento que despeja na  trama  projeções da  vida  examinada com  perdas nos horizontes pessoais do personagem. E assim aproveita esse mar que em cima ilumina e embaixo ronca como um bicho  fantástico  para interligá-lo  àquele tempo interior do adulto, bem como  do menino  ao lado do pai, nas bicicletas ambos  pedalando  pela praia, rumo ao Pontal dos ilhéus. No  menino  que é  socorrido pelo pai quando sofre o acidente e quebra o braço. No  adulto  que vem do Rio de automóvel em busca do aconchego da mãe, que já está morta.  Nesse mesmo tempo dolorido,  que, fundido em dois planos,  do  passado e do presente, como se fosse uma coisa só, na duração de um só instante, narra-se  a viagem daquele homem  que veio de longe, escolhido pelo Anjo da Morte,   em busca do afeto materno.  Há que ressaltar os lances pungentes em que no tempo interior do adulto reencontram o menino, nesse retorno em que  a consciência sabe que a mãe  permanece no primeiro,  mas que de fato ela já não mais existe.

Há que destacar ainda  em Mar de Azov certas preciosidades que apontam para nossa identidade em busca de uma explicação  do que somos no enigma da vida. O menino pergunta ao pai o que é ser homem, e o pai responde que é assumir a realidade da vida. Em outro trecho, o pai mostra que viver é difícil “… como transportar na mão um copo cheio de água,  por exemplo.” O menino observa que a água não pode derramar, o pai diz que não deve derramar, mas transborda, por mais que se tenha cuidado. A tentativa de recuperar nossa identidade  que se perde no tempo é a  mostra corajosa e digna do escritor que acumulou experiências, que sabe manejar  com sobras sua  capacidade artística  para que nos force a pensar e sentir a vida.  Sábios são os mais velhos, os que armazenaram  erros e aprenderam  com seus desacertos, o pai disse ao filho.

“Zepelins”, como o conto “O Outono de Nosso Verão”, do livro Massacre no km 13, é uma narrativa primorosa sobre o tema do amor.  É a história da implantação de um  núcleo integralista em Itabuna, lá pelos idos da Segunda Guerra Mundial. O Major  Taborda, na condição  de chefe regional da ideologia extremista, é o incumbido  da missão e traz com ele a esposa Isabel, de traços brancos definidos, vivências apuradas em outros mundos civilizados e que por isso não se ajusta ao tédio que lhe causa a cidade pequena. O clima amoroso, que se faz real, entre o moço da cidade interiorana e Isabel, a de “colo generoso sem ser farto”, culmina em ardentes encontros carnais, que não se atritam com qualquer espécie de constrangimento. O desfecho surpreendente da narrativa  serve para desmistificar  o caráter sem sentido quanto mais niilista de ideologias  extremistas.

Em “Começo de Vida”, a  vida se faz em meio a frustrações e amarguras. O conto mais próximo da narrativa tradicional, de princípio, meio e fim, narra os conflitos de pai e filho, que resolve sair de casa pelo mau trato que lhe é reservado nas relações cotidianas em família. A ausência de valorização do íntimo impele o filho para desejos que se fazem vontade forte, na direção de torná-lo um dia um  homem rico. Quando isso acontecer, a revanche será realizada contra o pai, que sempre o rebaixou  na aventura deprimente  da vida.

Das narrativas que integram Mar de Azov a mais complexa na estrutura e urdidura ficcional  é a que se apresenta em  “As Dríades”. Qual o termo que se aplica melhor  para delimitar esse instigante texto de ficção? Apenas o de  ficção? O de onírico, que se desenvolve por meio de imagens e alusões  sem contornos precisos?  Ou o de simples fantasia em que entra o transplante do mito grego para os bosques dos cacauais no sul da Bahia?  Pastoral  sob o influxo do clima gerado pela contemplação dos sentidos diante da terra e das águas, de onde provém  a vida? Devaneio com sua melodia líquida, de inspirações contrastantes, descrições que se referem  à roça de cacau como uma catedral bela e estonteante, sem  princípio nem fim, nas camadas nebulosas e vítreas?  Ou tudo isso reunido no aglomerado sutil de uma narrativa que já nasce belíssima em nossa moderna literatura?

As Dríades na mitologia grega eram divindades que habitavam  os bosques.  Nasciam nas árvores onde residiam. Não eram imortais como outras divindades que habitavam a floresta. Constituíam uma classe das ninfas, havendo outras como  as Naíades, que governavam os regatos e as fontes; as Oréades, ninfas das montanhas e grutas;  as Nereiadas, ninfas do mar. Essas três eram imortais. As Dríades eram companheiras de Pã , o deus da Natureza, que significava no universo,  por extensão,  tudo. As Dríades morriam como as árvores.

A imaginação dos gregos estendia-se para o povoamento por divindades de todas as regiões da terra e do mar. Os fenômenos naturais, que  os gregos atribuíam aos deuses,  passaram a ser explicados depois pelas leis da ciência. Mas o encanto que a ilusão dessa mitologia criou permaneceu no imaginário de poetas e ficcionistas. Conta-se na mitologia do paganismo  que Erisíchton era um homem rústico, de gestos compulsivos,  que resolvera  profanar com um machado um bosque consagrado à deusa Ceres. Havia no bosque um carvalho, que de tão velho e enorme era comparável a uma  floresta inteira. Nele eram colocadas guirlandas  votivas e inscrições manifestando gratidão  à ninfa que morava na árvore. Um machadeiro foi incumbido pelo homem grosseiro para  derrubar o carvalho. Ele resistiu à ordem que lhe foi dada, em razão do  caráter sagrado da velha árvore. Enraivecido com a atitude do machadeiro, Erisíschton ergueu o machado  e desferiu golpes  que atingiram  o corpo e decepou a cabeça do homem desobediente. A seguir, Erisíchton derrubou com o machado o carvalho,  mas  foi castigado pela Fome, a pedido de Ceres, que escutou  os clamores das Dríades. De tanta fome, que nunca conseguiu saciar, Erisíchton morreu devorando todas as partes de seu corpo.

O aproveitamento da mitologia grega em nossas letras atraiu   Sosígenes Costa  na elaboração de  Iararana, poema narrativo de temática indianista sobre a  mítica do cacau. Na epopeia curiboca, Sosígenes Costa  introduziu o personagem Tupã-Cavalo, um centauro, que veio de Portugal, depois de ter sido expulso da Grécia. Elementos da tragédia grega também foram compartilhados por Adonias Filho, que os transfigurou em seus romances e  histórias, cuja ação desenvolve-se na infância da civilização cacaueira baiana. Textos ficcionais desse escritor maravilhoso exprimem contradições, paradoxos, dúvidas, possibilidades de se refletir sobre a existência, o cosmos, as situações de estarmos aqui  em nossas relações sociais e com o destino dentro de uma geografia específica, de zonas primitivas com naturezas bárbaras.

Segundo Everardo  R. G. Rocha, o  mito faz parte daquele conjunto de fenômenos que espelham uma coisa inacreditável, impossível de ser real, com suas passagens muito antigas, próprias de uma tradição. O aspecto sedutor do paganismo quanto ao mito das Dríades   vai atrair  o contista Hélio Pólvora, que o faz migrar numa narrativa perfeita  para a  zona cacaueira baiana.  Nesta poética das águas, o contista não  propõe figuras de contornos definidos. O tempo dessas ninfas, destituídas de traços  corporais precisos,  atravessa as quatro estações numa fusão de atemporalidade onde “o tempo é o mesmo, a tarde igual”.

Magdala  é filha e, ao mesmo tempo, mulher de seu pai. Afugenta todas as mulheres que antes foram dele. Não se sabe distinguir se  Edméa, Laura, Helena são todas e uma só. Magdala tem “imagem idêntica a da mulher  que se despe e entra na água”. Podemos pensar que o  que Hélio Pólvora pretende dizer nessa narrativa está articulado com os tecidos verbais da metáfora, e do próprio mito,  tanto é o texto feito de alusões com uma mensagem que não se faz codificada  literalmente. Nessa pastoral constituída em sua matéria de fios melódicos,  na tessitura da palavra que desliza pelas zonas suspensas do sonho, há alusões de que não existem vestígios de água em outros planetas do sistema solar. Até mesmo nas nuvens de Vênus não se deve confiar que elas contenham água.

As Dríades de Hélio Pólvora descem para o ribeirão, voam em bando, passam esgarçadas, residem no tronco dos cacaueiros. São furtivas, interferem como por encanto quando menos se  espera. Forçam em seu poder feminino que sejam contempladas. Suas atitudes furtivas  confundem-se  no córrego,  “vestido solto em cima da pele, colando-se então nos abismos de seus corpos quando saem a escorrer água, ou então espojando-se na água, em algazarra, como éguas que em tardes de calor e poeira se espojam suadas no potreiro”. (pg. 97).

Para o crítico Fausto Cunha, na última aba do livro,  trata-se de uma pequena obra-prima, de riquíssimo tecido verbal. A memória e o imaginário fundem-se nos presságios da morte, que é a da natureza em nosso planeta e a de planetas distantes. Dos acordes dessa melodia com  estofo de uma pastoral, localizada nas roças de cacau da Bahia, de fato  desprende-se  uma das páginas encantadoras da  moderna ficção brasileira.

Referências Bibliográficas:

POLVORA, Hélio. Mar de Azov, contos, Primeiro Lugar do Prêmio  Bienal  Nestlé de Literatura Brasileira, Editora Melhoramentos, São Paulo, 1986.

———————– Massacre no km 13, contos, Edições Antares, Rio de Janeiro, 1980.

COSTA, Sosígenes. Iararana, Editora Cultrix, São Paulo, 1979.

GRASSI, Ernesto. Arte e mito, Livros do Brasil, Lisboa,  sem data.

ROCHA, Everardo P. G. Rocha. O que é mito, Editora Brasiliense, São Paulo,              1985.

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia, Publicações Ediouro, Rio de Janeiro, 2001.

Lançamento: Estudos Direito Publico

Janeiro 30, 2013

Lançamento: Estudos Direito Publico

HONDURAS, PARAGUAI E VENEZUELA

Janeiro 29, 2013

Por Ives Gandra da Silva Martins

A coerência não é a maior virtude dos ideólogos. O respeito à lei é algo descartável, quando a ideologia a ser preservada está em jogo. Todos acompanharam o burlesco episódio de Honduras. Determina o artigo 239 da Constituição daquele país, que o dirigente que pretenda alterar o regime eleitoral, para admitir um segundo mandato, seja afastado do poder e inabilitado para exercê-lo por 10 anos. Ora, o presidente Zelaya, contrariando determinação do Parlamento e da Justiça, convocou plebiscito para obter a reeleição e foi, por esta razão, destituído da presidência. O eminente constitucionalista Dalmo Dallari, em brilhante artigo para a Folha de São Paulo, demonstrou o rigoroso cumprimento da lei suprema, na deposição daquele mandatário.

E tanto foi perfeito o “impeachment”, que, no prazo constitucional, houve novas eleições e foi, democraticamente, eleito um presidente.

Assim não entenderam, entretanto, o presidente Lula e seus parceiros bolivarianos.

O mesmo ocorreu com o Paraguai. O artigo 225 da Constituição paraguaia permite o afastamento do presidente por crimes políticos, crimes comuns e má administração. O Presidente Lugo, sem qualquer apoio popular, no Senado e na Câmara dos Deputados, foi deposto por incompetência. Afastado por má administração pelo Parlamento e com confirmação pela Suprema Corte, continuou morando livremente em Assunção, sem que houvesse manifestações populares de expressão a seu favor e sem necessidade de tropas nas ruas para garantir a decisão do Parlamento e da Justiça.

Novamente, os ideólogos do poder, afinados com os governos de Chavez, Cristina, Morales e Corrêa, além de Mujica, declararam que houvera rompimento da democracia, suspenderam o Paraguai do MERCOSUL – em decisão muito mais rápida que a do afastamento do Presidente Lugo – e aceitaram, de imediato, a Venezuela como participante do bloco, nada obstante não ter aquele país aprovado o acervo normativo comunitário.

Em meu depoimento no Senado Federal sobre o tema, cheguei a ironizar o pedido de ingresso, por falta de aceitação da totalidade do acervo normativo, sugerindo aos senadores: “Não digam sim, nem não; digam talvez”, pois só após sua aceitação poderia a Venezuela ser admitida.

Sem ter esta garantia e sem o apoio do Paraguai – afastado, por ter cumprido rigorosamente sua Constituição -a Venezuela foi admitida, sendo sua admissão resumida em gráfica frase do presidente do Uruguai: “A nossa decisão não foi jurídica, foi política”.

Agora, em relação ao novo parceiro, em que, nitidamente, sua Constituição foi dilacerada, pois a governa desde 11/01/2013, um ditador que NÃO FOI ELEITO PELO POVO – visto que lá o vicepresidente é de livre nomeação do presidente e seu mandato encerrou-se em 10 de janeiro -, o Brasil, contra a clareza do artigo 231 da lei imposta pelo próprio Chavez, dá pleno apoio ao golpe, sob a alegação de que o enfermo presidente, cujo mandato iniciarse-ia em 10/01/2013, foi eleito pelo povo, ignorando que o vicepresidente, que é quem está governando a Venezuela, não o foi!!!

É de se lembrar que a incapacidade física ou mental permanente do presidente (art. 233) deveria ser atestada por uma junta médica designada pelo Tribunal Superior de Justiça, que, após o expurgo realizado por Chavez na Justiça, não só pisoteou o artigo 231, como não cumpriu o 233. Até hoje, ninguém sabe, na Venezuela e no mundo, qual seu real estado de saúde.

Ora, o Itamaraty, sob o comando dos presidentes Lula e Dilma – que, pessoalmente, admiro, mas de quem, neste ponto, divirjo diametralmente -utilizam-se de dois pesos e duas medidas, esfrangalhando o direito internacional e desfigurando por inteiro a respeitadíssima Casa de Rio Branco.

Estou convencido que parte dos problemas brasileiros de alta inflação, baixo PIB, último lugar de desenvolvimento entre os países latino-americanos, sem grande perspectiva de crescimento – pois amarrado a uma esclerosada máquina administrativa e deliberadamente complexo, confuso e arcaico sistema tributário -, são decorrentes desta postura ideológica, que leva o Brasil a submeter-se às políticas de nossos vizinhos, esquecendo-se de que, como nação soberana, deveríamos nos comportar como os grandes emergentes, livre de posições ideológicas arraigadas, tratando de igual para igual os países desenvolvidos e superando antigos complexos de inferioridade. Sem isso, não passaremos ao mundo a mensagem de um país em que existe segurança jurídica e robustez das instituições democráticas.

Como presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio, tenho sido, algumas vezes, consultado por investidores estrangeiros e, quando exponho a complexidade do sistema tributário brasileiro, sinto um desinteresse crescente em terem o Brasil como opção de investimentos – o que me faz lamentar profundamente.

Creio que a Presidente Dilma, que é economista, poderia refletir sobre as verdadeiras razões que estão levando o Brasil a esta situação de desfiguração institucional. Certa vez, em palestra proferida na Universidade de Coimbra com o ex-presidente Mário Soares, fez-me ele, durante o almoço que se seguiu às conferências, a observação pitoresca de que administrara Portugal sem ser influenciado por ideologias. Disse-me ele: “o povo não come ideologia, come pão”. E para que coma pão, não é necessário apenas uma política de incentivo ao consumo, mas principalmente –o que inexiste- uma filosofia de gerar produção, competitividade, tecnologia para podermos, no futuro, manter o consumo, e não vêlo reduzido, por falta de crescimento.

Escritores, homenagens e pombos

Janeiro 11, 2013

Por Dalila Teles Veras

No jornal O Estado de São Paulo: “Charles Dickens Ganha Estátua – O escritor Charles Dickens (1812-1870) pediu que nenhuma estátua fosse feita em homenagem a ele, mas não teve seu desejo atendido. No dia 9 de junho, no 133º aniversário de sua morte, será inaugurado um monumento no valor de 118 mil libras, em sua cidade natal, Portsmouth, onde ele viveu até os três anos de idade. Ele estará sentado numa cadeira lendo um livro. Esta será a segunda estátua para o autor de Oliver Twist e Um Conto de Duas Cidades. A primeira foi erguida em 1891, na Filadélfia. Em dezembro, no final das comemorações pelo seu bicentenário, o museu dedicado a ele, em sua casa de Londres, foi reaberto depois de passar por reforma.”

Estou com Dickens. Nada mais inglório do que passar a vida com a cabeça cagada pelos pombos! A memória de um escritor está nos livros que escreveu e… por que não? nas marcas que deixou no seu ambiente de trabalho. Preservar as casas-museus de escritores, manter o “clima” de sua época, é um “investimento” bem mais interessante e honroso.

A cacimba das Lages e os burgos coríntios

Janeiro 11, 2013

Por Nilto Maciel

Tenho lido, com muito interesse, obras em prosa, diversas da ficção. Refiro-me a ensaios (e isso vem desde a juventude, com os estudos filosóficos), relatos de viagem (afundei-me, durante um tempo, naqueles viajantes europeus que para a América vieram), manuais de história, mitologia, sociologia, cartas (quem não leu Pero Vaz de Caminha?), conjuntos de artigos e resenhas, biografias (recentemente li uma de Borges), memórias, entrevistas, etc. No final de 2012, recebi dois volumes cujo assunto os inclui nesse espectro tão amplo: Lembranças miúdas, de Dias da Silva, e Meu brechó de textos, de Carlos Trigueiro.

O cearense (de Lavras da Mangabeira) “enveredou pela biografia e o ensaio, pela crônica de sabor regional e pelo memorialismo”, como observou Dimas Macedo, num artigo. E nele citou algumas de suas coleções: Um Padre e Muitas Proezas (1982), Cenas, Lições e Coisas (1984), Mangabeira nas Artes nas Letras no Mundo (2002) e Pedaços da Vida e Outras Coisas em Pedaços (2002). O ficcionista manauara não é tão prolixo (no espaço quase infinito da prosa não-ficcional) quanto Dias, talvez porque tenha se dedicado mais ao conto e ao romance.  Estreou com Memórias da liberdade (1985), seguido de O “jeito” brasileiro: um fenômeno cultural (2009) e Ilações sobre a criatividade latina e ladina do “jeito” (idem).

Tenho visto Dias da Silva em livrarias e outros lugares, em Fortaleza, onde se realizam encontros de escritores ou destes com leitores. Não nos vemos muito, porém. Mando-lhe meus livros (de ano em ano) e ele me envia os seus. É assim a vida de escritor brasileiro. Carlos Trigueiro só vi uma vez, no Rio de Janeiro. Fez-me saber do nosso mútuo conhecimento, em 1976, na capital cearense. Não me lembro disso, infelizmente. Agora trocamos mensagens eletrônicas, de vez em quando. Outrossim, me brinda com suas publicações e eu retribuo o mimo com meus raquíticos opúsculos. O primeiro tomo de Dias a me chegar aos olhos terá sido Da pena ao vento – I (anotações de pé de página), ainda em 1981. Vieram outros ventos e muitas penas. Se não minto, já são nove. Trigueiro me mimoseou (não em 1994, ano da edição, mas recentemente) com os contos maravilhosos de O clube dos feios e outras histórias extraordinárias.

Ora, estou a me estender demasiadamente em informações inúteis para o leitor. É hora de me voltar exclusivamente para os dois títulos mencionados no início desta crônica. Então vamos a eles, com vagar e didaticamente. (Como não consigo me livrar desses advérbios terminados em mente!).

As reminiscências de Dias da Silva se iniciam no capítulo “Meu pai”. E vem logo a primeira revelação: “Ainda vejo meu pai assim: ele não esbanja carinhos pelos filhos nem pela minha mãe: o amor de meu pai chamar-se-ia amor envergonhado e encabulado”. Encerra-o com um poema em versos livres: “Quero de volta meu pai: jovem e lépido / o tempo – tirano implacável / o tempo – insensível carrasco / enche de neve a cabeça de meu pai” (…).

No “hipotético brechó” de Carlos Trigueiro não há lugar para as lembranças de família, da vida doméstica, da infância. Há nele artigos, um ensaio, entrevistas, aforismos, poemas, contos, crônicas, “imitações de haicais”, “rascunho de palestra”, trechos de seus impressos (como as chamadas “lápides”). Engano-me: há, sim, lugar para as lembranças de família. A parte intitulada “crônicas agudas” trá-las. Uma delas, a primeira (“O ouvido de meu pai”) até cuida do mesmo tema celebrado por Dias da Silva no princípio de seu compêndio. Carlos mostra seu pai assim: “Meu pai tinha o que os americanos chamam de ‘perfect pitch’. Traduzindo em miúdos: tinha ouvido absoluto – a capacidade rara de ouvir e reproduzir imediatamente um determinado som”.

Dos personagens principais de sua vida (pai, mãe, avó paterna, avô), Dias da Silva passa aos lugares – Sítio Lajes (sua primeira morada) e casa da avó – e aos acontecimentos: “Morte na cacimba”. A descrição é minuciosa e bem elaborada: “Minha tia lava roupa com água da cacimba. Não é uma cacimba comum, igual a tantas outras: buraco redondo, cavado fundo, até encontrar veias e água. A cacimba das Lajes de minha avó é diferente. Assim: escavação com um a dois metros de comprimento, e rasa. Feito tanque cavado até dar à água escondida no chão”. Preciosidade de descrição.

A linguagem de Carlos Trigueiro é, do mesmo modo, clara, objetiva e de fácil entendimento. Não somente quando escreve artigos, mas também prosa de ficção. Pois este Meu brechó de textos é igualmente uma compilação de trechos de seus contos e romances. Assim, “Ciúme artístico” (um dos “aforismos do baú”), extraído de O livro dos ciúmes: “Não confio em artistas… Tenho horror de pintores, são traiçoeiros, olham para uma coisa e pintam outra. Ou olham para outra e pintam uma coisa! Nem em músicos, só que a musa pode ser a mulher da gente”.

São dois malabaristas das letras. Dias da Silva, apesar de lidar com reminiscências (da infância), ou seja, de um passado bem distante, não menciona datas (anos) e escreve como se fosse agora, sempre no presente do indicativo: (…) meu pai “dorme o sono doce e sossegado dos bons e dos justos e dos que não estão em falta”. Além disso, certamente já é falecido. Tudo é presente, sejam as pessoas, sejam os acontecimentos. Os lugares, por isso, são descritos como se não tivessem conhecido mudanças. Tudo é (na memória) como era: “A Barra do meu Avô – terrenão bonito, o terreno do meu Avô – é cortada de caminhos e veredas”.

O libertino Carlos Trigueiro (seu mais recente romance se intitula Libido aos pedaços) não se contenta com rememorações infantis (inocentes). Vai direto à sexualidade, como na crônica (são apenas três em todo o volume) “Sala de aula no fim do corredor”. Inicia-a com a apresentação da professora de História, a jovem Helena, a quem chama de uma das “semideusas das enciclopédias de papel acetinado”. E assim narra uma cena, em sala de aula: a mestra, “mãos empoeiradas de giz”, “esboça no quadro-negro os caminhos da helenização do Oriente”. O aluno (narrador) a deseja: “Claro que a persigo – nos meus sonhos e devaneios – por entre as figueiras perfumadas que enfloram ao amanhecer e circundam os burgos coríntios onde ela pisa, vagueia e flutua. Primeiro vejo-a com a túnica descaída, seminua. Mais adiante, sem a túnica, finalmente nua”.

Não farei outras citações, que não sou copista de ninguém e muito menos desmancha-prazeres de leitores. Apenas direi: Dias da Silva e Carlos Trigueiro me proporcionaram neste início de 2013 alguns momentos de prazer. Quem não se regozija com um bom texto? Só se for insensível. Ou não tiver olhos para ler ou ouvidos para ouvir.

Fotos do Lançamento do n° 25 da Revista Arganilia – 28/12/2012 – Tábua – PT

Janeiro 10, 2013

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