Museu do Santuário de Fátima

Museu do Santuário de Fátima: a salvaguarda de um espólio inestimável

por Marco Daniel Duarte

Procissão de nossa Senhora de Fátima

Procissão de nossa Senhora de Fátima

O Museu do Santuário de Fátima foi erigido, em 1955, pelo bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, com o intuito de poder entrar em funcionamento nos 40 anos das Aparições, em 1957. Através da provisão episcopal, o prelado leiriense, neste documento fundacional, criou uma instituição com sede no Santuário da Cova da Iria, que denomina, «sem pretensões e demasiadas preocupações de exactidão», “Museu-Biblioteca do Santuário de Nossa Senhora do Rosário da Fátima” (“Provisão de D. José Alves Correia da Silva”. Leiria, 1955, também publicado em “A Voz do Domingo”, ano 23, n.º 1167, 1955.08.14, p. 4, e em “Voz da Fátima”, ano 33, n.º 396, 1955.09.13, p. 2). Apesar de o bispo considerar as Bases de orientação que promulgava em estado incompleto (p. 7), à luz das teorias museológicas da época, o programa revelava bastante coerência e assertividade no concernente à tipologia museográfica em causa. Embora estabelecesse um plano geral, alguns dos dez pontos que compunham as bases orientadoras desciam à especialidade da proposta em ordem a, pragmaticamente, concretizar uma instituição que se queria tripartida em “Museu”, “Biblioteca” e “Arquivo”, enunciando a necessidade de elaborar um «inventário», a oportunidade de efectivar uma «exposição» e instituindo o «regime de depósito». Neste interessante documento de instituição, percebem-se anseios que, verdadeiramente, se inscrevem nos objectivos que, ao longo do século XX, guiaram a criação de espaços museológicos, como são os que aparecem enunciados numa espécie de intróito que coloca a tónica na urgência de preservar, de conservar e de defender «os restos de um passado que começa[va] a ser remoto» (p. 4). Tal carta fundacional criava a instituição que albergaria «ex-votos e principais recordações» dos peregrinos; material histórico, artístico e etnográfico; arte sacra e, em particular, arte mariana; testemunhos das peregrinações internacionais da Imagem da Virgem e, não menos importante, as relíquias relacionadas com a História das Aparições.

A estas, de uma forma particular, já se havia referido, anos antes, Sebastião Martins dos Reis, presbítero do clero de Évora e investigador da história de Fátima, precisamente a propósito do mesmo assunto, num lembrete acerca da imperiosa necessidade de construir no Santuário de Fátima um «edifício novo, digno e amplo, intencionalmente construído para Biblioteca-Arquivo-Museu» (REIS, Sebastião Martins dos – Fátima: as suas provas e os seus problemas. Lisboa, 1953, p. 335). Apelando ao «mais equilibrado espírito crítico» e à «melhor actividade científica» (p. 337), depois de enunciar que o acervo deveria ser constituído por escultura, pintura, gravura e arte vária, lembrava a importância das relíquias, dos «objectos pertencentes aos videntes» (REIS, p. 336).

Não obstante a prossecução de várias das directrizes que D. José Alves Correia da Silva havia escrito em 1955, o Santuário de Fátima nunca teve um edifício destinado a museu, o que não contrariou, porém, o desenvolvimento do trabalho típico das instituições museológicas, que tem sido desenvolvido sobretudo no respeitante ao labor de recepção, estudo e conservação dos bens a musealizar. Do ponto de vista institucional, o Museu depende do Serviço de Estudos e Difusão da Mensagem de Fátima, designação actual de uma repartição iniciada com a reforma de serviços do reitorado de Luciano Guerra (reitor entre 1973-2008).

Apesar de o espólio ter aumentado, inclusivamente, ao nível da qualidade artística e de se assegurar o seu estudo e investigação, não foi criado ainda um espaço físico com as valências necessárias à importância do espólio do Museu, que tem funcionado no edifício da Reitoria, embora o Santuário tenha em mente a edificação de um espaço museológico: «o Santuário não tem senão uns pequenos espaços dispersos onde armazena os muitos objectos que tem acumulado […]. Não teve também até hoje um espaço condigno de exposição» [“Grande Espaço Coberto para Assembleias (GECA) e Outros Espaços”, p. 27]. Tal situação não foi, no entanto, óbice para falta de trabalho no domínio museográfico e museológico. O estudo de um considerável número de peças de maior erudição ou de valor intrínseco pelo material nobre de que são feitas e também das peças que, não obstante poderem ser artisticamente menos ricas, são simbolicamente importantes para a realidade do local, encontra-se assegurado pelo referido SESDI, através da acção de Luciano Coelho Cristino e, a partir de 2008, através da secção de Arte e Património. Tal labor resultou na abertura ao público, já em 2002, de uma exposição permanente do espólio mais representativo do museu. A Exposição “Fátima Luz e Paz” é um dos mais importantes resultados dessa acção de recolha e preservação do espólio do museu que, abrindo à visita dos peregrinos em 2002, segue os moldes (horários, tipologia de visitas) dos museus internacionais, mostrando ao público algumas das mais importantes peças do tesouro do Santuário de Fátima. Através de um percurso didáctico, assumidamente catequético, que assenta na explanação e difusão da mensagem de Fátima, o núcleo expositivo propõe-se enquadrar os objectos no lugar em que os peregrinos-ofertantes e o santuário-receptor os coloca: são ofertas especiais, oriundas dos vários tipos de peregrinos, desde os anónimos aos mais conhecidos como são os papas que visitaram Fátima ou que ofertam a Fátima a propósito das peregrinações da Imagem da Virgem. No contexto de um santuário de peregrinação, no qual um dos vectores mais importantes é o cumprimento de promessas que assentam numa troca, com a entidade cultuada, de orações, muitas vezes traduzidas em ofertas materiais (desde os tradicionais ex-votos de cera até aos objectos mais eruditos, não raras vezes fruto de campanhas organizadas por instituições reconhecidas – dioceses, ordens ou institutos religiosos, paróquias, grupos especiais – dos mais diversos lugares do globo, tendo destaque os países de língua portuguesa).

A exposição destes objectos, que no segundo ano de permanência contava com cem mil visitantes, encontra-se efectivada com critérios assentes na representatividade daquelas oferendas e no valor (artístico, religioso e não só) das mesmas: aí se podem observar alfaias litúrgicas de diferentes cronologias e estilos artísticos, insígnias de autoridades eclesiásticas, escultura e pintura sacras, objectos do quotidiano e objectos especiais (a coroa preciosa da Imagem da Virgem da Capelinha das Aparições, a bala do atentado ao papa João Paulo II, a Rosa de Ouro, um manto da rainha D. Amélia de Orleães, alguns troços do Muro de Berlim, entre outras ofertas de peregrinos mais anónimos ou mais conhecidos). O denominador comum é o de serem ofertas à Virgem de Fátima e todas se encontram debaixo da égide que lhes serve de título: Fátima Luz e Paz. Para organização da exposição contribuiu o trabalho da equipa do Santuário de Fátima e a concepção museológica de Maria Teresa Gomes Ferreira. Segundo o Serviço de Peregrinos do Santuário de Fátima, serviço responsável pelo acolhimento aos visitantes na exposição, a exposição recebe por ano mais de 66000 visitantes.

Ainda sob a responsabilidade do Santuário de Fátima está a Casa-Museu de Aljustrel, espaço visitável desde 1992 com o intuito de exibir uma reconstituição da vida quotidiana do meio rural do início do século XX através da concepção museológica de uma equipa interdisciplinar composta por Joaquim Roque Abrantes, Manuel Serafim Pinto e Maria Palmira Carvalho. Para além deste núcleo museológico, também na zona de Aljustrel, o lugar de origem dos videntes de Fátima, podem ser apreciadas as casas dos videntes, salvaguardando as diferenças simbólicas e as valorações religiosas que estas últimas detêm. Também a partir destas se poderá colher informação sobre o passado das gentes de Aljustrel e também nelas se nota o cuidado na reconstituição cénica da paisagem da casa rural e dos seus conteúdos etnográficos. O fundamento histórico exigiu um avultado empenho no estudo dos objectos dos princípios do século XX que asseguram uma visualização do quotidiano doméstico ao tempo das Aparições de Fátima.

Território de movimentação de massas, vindas de muitas zonas do globo e com interesses vários, desde os que se relacionam em primeira instância com a função religiosa até aos que se ligarão aos intuitos mais turísticos, Fátima é terreno intelectual que bem permitirá o desenvolvimento das mais recentes tendências museológicas, algumas ainda em estado de aferição epistemológica como os centros de interpretação. É, com efeito, lugar privilegiado para a percepção, também através dos variados testemunhos materiais, das realidades da Igreja e do culto mariano na centúria de Novecentos. Sendo um dos mais importantes lugares da Religião Católica no mundo, o Santuário de Fátima possui inestimáveis testemunhos que materializam as diferentes relações que, no tempo que a historiografia chamou contemporâneo, o ser humano estabelece com o divino. A especificidade do museu deste Santuário advém-lhe da heterogeneidade do seu acervo que se mostra importante tesouro, não só para a história de um santuário destas proporções (e que conta já com quase um século de existência), mas também do interesse de diferentes áreas disciplinares das denominadas ciências humanas e sociais como são, entre outras, a História, a Arte (popular e erudita, com destaque para a ourivesaria), a Antropologia, a Sociologia, a Etnografia, a Liturgia e a Religiosidade Popular.

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