Arquivo de Março 2010

O inesperado fim do ano de 2009, que vivi no Hospital de São Joaquim, em São Paulo

Março 1, 2010

Por João Alves das Neves

1- Talvez vez seja oportuno lembrar que, após um ataque de tosse, pode vir outro –  e foi o que me aconteceu. Depois do primeiro, vieram muitos, embora ao chegar ao pronto-socorro do grande hospital da Beneficência Portuguesa esperasse achar depressa  a mezinha salvadora e voltar para casa, antes que os meus filhos e netos fossem cumprir os programas que haviam feito para a noite de 31 de Dezembro. Mas não foi assim e eu e a minha Mulher ficámos num apartamento hospitalar confortável e em segurança.

Afinal, a broncopneumonia foi eficazmente combatida, mas não sem afetar outros órgãos,  entre os quais o coração, a garganta e sei lá mais o quê e somente após 36 dias pude regressar a casa – espero que por bastante tempo! Sentia-me protegido, no hospital São Joaquim (a Beneficência Portuguesa de São Paulo inaugurou há meses as  novas instalações do São José (que fica do outro lado da rua), moderníssimo (aliás, ambos estão super-equipadíssimos, dispondo de mais de 60 salas de cirurgia e de quase 2.000 leitos),  contando  com a assistência de cerca de 1.500 médicos e vários  milhares de enfermeiro(a)s – no total, são perto de 5.000 os funcionários: admito que o conjunto hospitalar luso-paulista é não só o maior do Brasil mas também do vasto  Mundo Português.

Aqueles que ainda não puderam avaliar o esforço da emigração portuguesa têm na Real e Benemérita Associação Portuguesa de Beneficência Portuguesa de Beneficência de São Paulo, fundada em 2 de Outubro de 1859, o exemplo da fé inquebrantável da Diáspora Lusíada, cujos representantes dispersos pelos 5 Continentes dignificam a Pátria distante e os países onde se radicam. Os emigrantes portugueses valem pelo que constroem!

2- Sim, quando temos dores, as noites custam a passar. E sem dores também custam: o silêncio não é apenas de ouro. A semi-sonolência levou-me com freqüência à  aldéia natal e a toda a Beira-Serra, aos familiares e amigos, a Lisboa e a São Paulo (onde, afinal, eu me encontrava). E as pessoas vivas e mortas dialogavam comigo – lá em frente, eu via os soutos (que já desapareceram), as oliveiras e os meus amigos de outrora. E eu renascia! Sonho? Talvez, mas era o passado que se confundia com o presente, era o meu Pisão restaurado, após a grande luta que  a gente da minha terra travou pelo progresso comunitário. E, entre os felizes  minutos revividos,  algumas mágoas e incompreensões dos que não me conhecem. Haja o que houver, valeu a pena!

3- Já estou outra vez na luta, mas, antes de concluir, quero agradecer aos amigos que me contactaram e desejaram  “boa saúde”!

(*) O autor desta crônica vive no Brasil (e-mail: jneves@fesesp.org.br)

Transposição do Rio São Francisco

Março 1, 2010

por  Ives Gandra

Preocupa-me, sobremaneira, a forma açodada como tem o Governo Federal trabalhado para impor um projeto de alto risco e que pode agravar a “doença” do Rio São Francisco – já padecendo, na foz, de recuo das águas, por insuficiência de vazão.

A ANA (Agência Nacional de Água), agência encarregada expedir o certificado de sustentabilidade hídrica e de conceder a outorga de uso definitiva, demitiu-se de colher os dados para elaboração do balanço hídrico indispensável para aferir se a obra é, técnica e economicamente, viável. Passou essa incumbência para o Ministério da Integração Nacional, que, por sua vez, oficiou os próprios Estados para que enviassem demonstrativos dos valores de demanda e de oferta hídricas em seus territórios.

Ocorre que tal solicitação foi dirigida, EXCLUSIVAMENTE, AOS ESTADOS DAS BACIAS RECEPTORAS, OU SEJA, ÀS UNIDADES DA FEDERAÇÃO PRETENSAMENTE BENEFICIÁRIAS DA EVENTUAL TRANSPOSIÇÃO, SEM CONSULTAR OS ESTADOS INTEGRANTES DA BACIA DOADORA DA ÁGUA, CERTAMENTE OS ÚNICOS PREJUDICADOS PELO PROJETO DE TRANSPOSIÇÂO, DA FORMA COMO ELABORADO.

Ora, embora não seja técnico na matéria, parece-me evidente que a falta de demonstrativos relativos à demanda e oferta hídricas dos Estados doadores inviabiliza a elaboração de um balanço hídrico minimamente confiável, o que pode lançar o país em desastre ambiental e econômico sem precedentes.

Ademais, do ponto de vista jurídico, nada justifica o tratamento diferenciado que o Ministério da Integração Nacional deu aos Estados beneficiários em relação aos Estados doadores.

Por outro lado, a obra foi orçada para permitir, excepcionalmente, a captação da vazão máxima diária de 114,3 m3/s e instantânea de 127m3/s, – a depender de um nível de água do reservatório de Sobradinho que se verifica de 7 em 7 anos – e para permitir a captação de uma vazão normal de 26,4m3/s, deixando claro que se trata de obra superdimensionada !

Note-se que os dados que vêm de ser coletados pelo Ministério da Integração Nacional junto aos Estados integrantes das bacias receptoras carecem de consistência em relação àqueles constantes do Estudo de Impacto Ambiental ( EIA RIMA) – que já haviam sido aprovados – e a outros dados apresentados por esses mesmos Estados em publicações oficiais.

A falta de consulta aos Estados doadores poderá levar Minas e Bahia a adotar, em relação aos rios estaduais que alimentam o São Francisco, critérios de utilização em benefício exclusivo de sua população, tornando a obra absolutamente inútil.

Enfim, a transposição afigura-se obra desnecessária – até por que órgãos técnicos nacionais e internacionais já demonstraram que os Estados das bacias receptoras dispõem de oferta de água suficiente – que poderá aumentar a doença do “Velho Chico”, provocar uma verdadeira catástrofe ambiental, concorrer para uma drástica redução da oferta de energia no nordeste, sem falar no previsível risco de prejuízos aos cofres públicos federal, estaduais e municipais.

Passa, por outro lado, sobre a legislação que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (Lei 9984/00), ao desrespeitar as prioridades, limites e critérios de outorga para uso das águas estabelecidos no Plano Hídrico da Bacia do São Francisco, elaborado pelo respectivo Comitê.

Aliás, a competência do Comitê da Bacia do São Francisco – que já vinha elaborando projeto de transposição, respeitados os parâmetros do Plano de recursos hídricos por ele elaborado – foi usurpada pelo Conselho Nacional para aprovação do Projeto do Governo Federal.

É de se lembrar que os chineses levaram 50 anos para decidir a transposição do Rio Amarelo, enquanto o Governo Lula pretende dar início a obra de tal envergadura – e de resultado tão duvidoso – nos poucos meses que ainda restam de seu governo.

Estou convencido de que matéria dessa magnitude só poderia ser deflagrada em inicio de mandato, com ampla discussão, coleta e análise dos dados de todos os Estados envolvidos, inclusive os dos doadores – que decididamente não foram colhidos – e após a revitalização do rio. ]

O Governo Lula precisa, de rigor, não se deixar seduzir por medidas de palanque, mas que são capazes de prejudicar grandemente o país e pôr em xeque o pacto federativo.

Ele é Presidente do Brasil, não devendo tratar os Estados diferentemente, de modo a privilegiar alguns em detrimento de outros e de toda a federação.

A TAP AIR no Brasil

Março 1, 2010

A ousadia luso-brasileira, na opinião de Luiz da Gama Mór, vice-presidente Executivo e Comercial da TAP

Luiz da Gama Mór, vice-presidente Executivo e Comercial da TAP

Luiz da Gama Mór, vice-presidente Executivo e Comercial da TAP

A vida do gaúcho de Cachoeira do Sul, 58 anos, engenheiro mecânico licenciado na UFRGS, é dedicada à aviação, apaixonado que é pelas coisas de terra, ar e negócios relativos ao setor. Daí o encaminhamento de pós-graduação em Administração e Marketing, antes dos muitos cursos de aperfeiçoamento como o de Airline Business, pela London Business School. Possui uma experiente trajetória de 23 anos, focada em experiências nas áreas de comercialização, vendas, operacional, aplicando conhecimentos em estratégia competitiva, planejamento, desenvolvimento de produtos e fidelização de clientes. Foram muitos cargos na Varig, onde começou em 1972 como estagiário de engenharia e foi em ascensão, o último posto como vice-presidente executivo de Vendas e Marketing. Também foi diretor da Pluna, trabalhou na Aeromot, foi professor de Ciências Aeronáuticas e de Turismo, e membro do Conselho Diretor da Amadeus.

O executivo personalista cede espaço ao pai atencioso e dedicado que acompanha os filhos distantes, André, em Londres; e Alice, em São Paulo. E que continua uma história amorosa iniciada com a esposa Rosane, e que completou 40 anos agora em 2010.

Ao iniciar a etapa dos 65 anos da TAP, identificada na campanha da empresa, premiada e reconhecida, com projeções afirmativas de recuperação como nos últimos três meses, Mór afirma que pretende um ano de consolidação da oferta da companhia nos mercados internacionais e que pretende transportar 9 milhões de passageiros, um crescimento de 7,1%.

BRASILTURIS JORNAL – 2010 vai completar dez anos da direção brasileira na TAP. Em uma década dá para fazer história?

Dá, e muita. O mundo mudou e os tempos são outros. Quando assumimos a TAP, existiam as torres gêmeas em Nova York. A TAP mudou muito desde então e hoje é uma empresa muito mais forte, bem maior. Crescemos três vezes nestes dez anos. Conseguimos ultrapassar os segmentos, muitos de guetos étnicos que tínhamos, de ser considerada e percebida como uma empresa de segunda linha dez anos atrás. Hoje, somos uma marca que atende todos os segmentos, com um produto jovem, moderno, competitivo e inovador. Somos a primeira empresa aérea a voar para o Brasil com cama na classe executiva, a primeira a operar para mais destinos além dos normais – São Paulo e Rio -, e durante algum tempo, depois de 2001 e na crise, ficamos como única empresa aérea a ter voos diários do Rio de Janeiro para a Europa. Daí dizermos sempre que o Rio é um destino extremamente importante para nós e continuará sendo, ainda mais com a Copa de 2014. O Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas (SP), também será outra inovação como foi voar para Brasília, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Fortaleza, Natal e quem sabe será Manaus, o Norte e também o extremo Sul do País. Temos ainda muito para crescer, mesmo no Nordeste.

BJ – Aviação é uma conquista diária. Não existe, por mais que se possa dizer, a consideração de que aviação é fácil. É sempre difícil, uma empreitada muito complicada. Em época de crise, ainda mais. O ano de 2009 foi o mais difícil, uma travessia complicada. A TAP está preparada para este novo tempo que está começando?

É uma boa questão. Eu fico feliz da maneira como vocês do Brasilturis Jornal colocam isto da conquista diária. Muita gente tem dificuldades desta compreensão e querem que a gente desenhe o futuro de uma forma mais clara. Mais do que nunca, nós temos que ter agilidade. Nós temos um ativo extremamente caro, que tem um custo de operação elevado, com o combustível principalmente, mas não só. Tem operações, pessoal e outros. E por as margens serem muito baixas, não podemos nos dar ao luxo de perder dinheiro. A capacidade de se ajustar a cada momento é muito grande. O futuro tem sido muito incerto, muito mesmo. Quando a gente olha para trás, podemos achar que os eventos foram ótimos, mas quando se olha para a frente não se tem a menor noção. Em meados de 2008 estávamos pagando o barril a US$ 148, diziam que iria chegar a US$ 200 no final do ano. E o que aconteceu? Quando o ano terminou estava a US$ 50. É muito difícil prever. Eu acho que o grande ativo que nos introduzimos na TAP neste tempo que estamos aqui é isso. A compreensão que o mundo é assim, que não conseguimos definir o futuro com precisão, mas temos que ter clareza e objetividade estratégica: o que somos, para onde queremos ir e saber aproveitar quando as oportunidades aparecem. O resto está a cada instante, um pouco daqui e dali.

BJ – A TAP é um desafio maior do que você algum dia imaginou?

Acho que sim. Eu jamais imaginei para ser bem sincero, estar no comando de uma empresa aérea, qualquer que fosse ela, como aconteceu aqui. A TAP era até impossível de pensar, pois jamais imaginei viver fora do Brasil. E os desafios que foram colocados eu também jamais tinha sonhado. Isto é muito motivador (e alarga a voz para dizer o muuuiitoooo). Eu sou uma pessoa feliz. Mesmo com todas as dificuldades do setor, tenho paixão pelo que faço, por esta empresa e pelas pessoas que trabalham nela. Eu tenho paixão pelos projetos que criamos, estou sempre entusiasmado pelo próximo e isso é que dá energia e impulso para seguirmos em frente.

BJ – E a escolha para voar para Viracopos?

Um fruto desta capacidade que nos temos e a coragem de fazer um novo que ninguém fez. Fazer o que deve ser feito para manter a nossa liderança nesta correspondência Brasil-Portugal nos caminhos da Europa. Nos temos ainda regiões brasileiras que a gente gostaria de ter em uma oferta melhor e, que neste momento era o interior do principal pólo econômico do País que nos preocupava, até pelo estrangulamento de Guarulhos (Aeroporto Internacional de São Paulo) e a dificuldade de ali crescer. Nosso ativo competitivo no Brasil é a nossa dispersão por este país continente.

BJ – Para quem tanto conhece o Brasil, você tem a certeza de que o mercado do interior paulista está em festa com esta decisão da TAP?

Eu espero que sim. Isto a gente está fazendo com muito carinho. Nós vamos estar de olho no interior de São Paulo e estados vizinhos. É para o interior que a gente está fazendo isso e queremos estar à altura de atender um mercado que é extremamente exigente, importante e que tem sido deixado de lado. Do interior, ir para Guarulhos (Aeroporto Internacional de São Paulo) para embarcar, na atualidade, é um sofrimento que ninguém merece. Queremos dar uma alternativa melhor e espero estarmos à altura das necessidades do interior.

BJ – A promoção do Brasil no exterior é uma questão que, por  várias vezes observamos a sua cobrança, participando diretamente, insistindo, indicando e sem que nunca chegasse ao que você, o profissional, entendesse como necessário. Neste momento de mudança do perfil brasileiro para o mundo, como pensa?

O Brasil mudou muito. E as ações macro-econômicas, políticas e sociais, que colocam o País em evidência, nos ajudam bastante e criam uma extensão deste momento. O Brasil já tem uma marca forte. É impressionante. Digo isso, porque eu também promovo como TAP, Portugal e não só o Brasil. A marca Brasil é muito mais forte. Em qualquer lugar do mundo que se vá, dizendo-se brasileiro, houve uma alteração marcante de conteúdo e significado. Pode ser na China, na Tailândia, na Índia, na Rússia, em qualquer lugar, além da simpatia existente pelo Brasil, isso decorre de um modo natural. Eu diria que até mais do que a gente merece, muitas vezes. As pessoas acham que nos somos gente de bem. Um país alegre, por sua expressão musical, da maneira de ser, do futebol, da jovialidade… Agora é um desafio muito, muito grande. Construir e manter a marca de um país continental, com todas as suas diferenças.

Este novo momento do Brasil também nos enche de responsabilidades. Temos que estar preparados para crescer, atingir regiões cada vez mais longínquas, para o Leste, para a Europa nórdica… Para nós, não existe um Brasil, existem muitos, porque são diferentes, uns que formam um. Evidente que somos uma nação una e temos orgulho do nosso país, mas temos cidades e belezas locais diferenciadas.

O desafio da promoção me parece que ainda não é bem resolvido. Entendo que o Brasil se promove pouco e isso é ruim. Ainda não existe um modelo configurado pela descontinuidade política. Ainda bem que temos uma Embratur que ao longo dos últimos anos apresenta uma coerência e um profissionalismo em suas ações. Nos estados, nem sempre encontro isso, somente em momentos sazonais. Falta uma consistência, comparando-se com a necessidade e aquilo que os competidores fazem. Acho que temos muito que evoluir.

BJ – E Portugal?

Existe ainda, mas cada vez menos, um certo preconceito. Isto está mudando e a gente acha que está ajudando a mudar isso. Este é um país extraordinário, que tem atributos fantásticos para os brasileiros visitarem e, certamente, é a melhor porta de entrada para a Europa.

BJ – E o ano que está começando. Como idealiza, começando pela torcida na Copa, começando por Brasil e Portugal na mesma chave?

(risos)…Aí eu não tenho dúvidas. Sou Brasil na Copa do Mundo, apesar da cidadania portuguesa. Tomara que os dois cheguem à final, mas que o Brasil vença. No ano, acho que nos temos que deixar a crise para trás. Ou pelo menos a primeira etapa, já que esta crise não vai desaparecer neste ano, ela continuará com resquícios evidentes. Chamo deixar a crise para trás, uma recuperação nos grandes centros econômicos. Nos dependemos deles. Tenho extremo otimismo em relação ao Brasil neste ano. Estamos aumentando a oferta de vôos e estou tranquilo em relação a isto. Mas, não digo o mesmo em relação á Europa ou aos Estados Unidos, o que de forma indireta nos atinge. Gostaria que 2010 fosse o início de uma virada sustentada da economia geral mundial.

Matéria publicada no Brasilturis Jornal, dirigido por Horácio Neves.

Constança, Sabato, crônica, livro, realidade virtual, memórias

Março 1, 2010

Dalila Teles Veras

Retirado do blog da Dalila: http://dalilatelesveras.zip.net/

O assunto de hoje é longo tanto quanto o título e deve-se à visita que fiz há pouco ao blog da amiga Constança Lucas, no qual ela havia postado uma foto de uma página (sublinhada) do livro O Escritor e Seus Fantasmas, de autoria do escritor argentino Ernesto Sabato.

Fui de imediato à busca do meu exemplar (queria ver quais os trechos que sublinhei quando de sua leitura), mas, frustrada, vi que o mesmo encontra-se no momento ensacado, à espera da reforma da prateleira (como se vê tenho motivos para andar deprimida e “fora do eixo”).

Foi então que me lembrei de um encontro inusitado e memorável que tive com esse escritor em Buenos Aires, assunto que, por sua vez, me rendeu a primeira crônica (10.5.1995 – quanto tempo, meu Deus!) publicada na coluna Viaverbo, onde escrevi semanalmente até dezembro de 2000. Relendo-a, vejo que, apesar da  já longa (e irreversível e necessária) convivência com este meio, ou seja, praticamente desde os seus primórdios, a minha ranzinzice em relação à realidade virtual se mantém. Uma coisa é certa: grande parte daquilo que mencionei em relação ao ciberespaço mudou  (falar em “dicionários em disquetes”  em tempos de ebook reader e outras terminologias atuais, soa algo risível). A mutação veloz é a característica da tecnologia (imagine que esee texto foi originalmente gerado no sistema DOS de um XT !!!). . O que não é o caso do livro (e, até,  neste curioso caso, do escritor, que à época achava que morreria em breve,  mas encontra-se vivo, às vésperas do centenário) que pouco ou nada muda, como suporte. Um livro é um livro, é um livro…

Para quem não leu meu livro A vida Crônica onde o texto foi publicado, aí vai (pedindo desculpas a quem já o leu, pela repetição – aliás, o autoplágio já é uma constante):

A ESCRITA E A REALIDADE VIRTUAL

Que relação poderá haver entre um encontro mágico com um velho escritor e o admirável mundo novo da informática triunfante?

Era exatamente isso que vinha me perguntando ao sair, dias atrás, da 21ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, quando tive oportunidade de assistir a um momento único, que prova de uma maneira tão simples, a importância do livro e da literatura.

Um público estimado em 500 pessoas, na sua maioria, jovens, apinhado numa sala com capacidade para uns 250 lugares, entupia corredores e o próprio palco onde o escritor argentino de 76 anos Ernesto Sabato era esperado. Depois de ovacionado durante alguns minutos, o escritor, diante de um profundo silêncio da platéia, declara que se sente mal e que vem sendo assim desde que perdeu tragicamente um filho. Só estou aqui porque sabia que me esperavam, disse. Silêncio outra vez. Que hei de dizer a vocês? pergunta o velho escritor, com voz visivelmente cansada. Silêncio. Um jovem grita: fuerza, fuerza… e o escritor, muito emocionado, diz que jamais alguém lhe havia dito isso. Silêncio profundo novamente. Até que uma senhora, lá do fundo do auditório diz que, em nome de todos, não tinha o direito de exigir que o maestro  permanecesse ali sentido-se mal, mesmo porque haveria outras oportunidades de encontro. A platéia aprova por aclamação e Sabato aceita, dizendo que, se não houver outros encontros, pelo menos esperava por todos em seu enterro. Silêncio pesado novamente, desta vez podendo-se sentir a emoção geral diante da possibilidade da perda, quando alguém grita: maestro, homens como você não morrem jamais.

Retira-se o escritor, sob uma comovida e longa ovação, sabendo que sua obra ficará e seus livros permanecerão, mesmo após a invasão em massa da realidade virtual.

O livro, da forma como, desde Gutenberg, nos acostumamos a ver, contendo capa, lombada e folhas impressas,  passou a conviver pacificamente nas prateleiras com os disquetes do dicionário Aurélio, das enciclopédias, revistas e livros animados em CD-ROM (Read Only Memory – disco que armazena imagens, textos e áudio).

Está na moda falar em Realidade Virtual, ou seja, qualquer sistema informático em que se cria um ambiente com o qual o usuário pode interagir. De acesso ainda restrito a poucos no Brasil, é divertido assistir ao espanto dos mais desavisados diante de termos da moderníssima informática, como  Cyberspace (dimensão que só existe na memória de um computador) Teledildonics (sinônimo de sexo virtual, ou seja, simulação de sexo com o uso da comunicação eletrônica) ou ainda literatura cyberpunk (ficção científica cibernética), com frequência utilizados nas conversas de bar ou fila de espera do cinema.

Quem ganhará a batalha das estantes? O livro ou o disquete?

Assim como o rádio não acabou com o jornal nem o cinema e Tv acabaram com o rádio,  os sistemas de informação eletrônica não acabarão com o livro. A tela e o CD-ROM mostram outras possibilidades do ver, mas não substituem o prazer de folhear a página, assim como a imagem formada pela infinita combinação binária do 0 e 1, não substituirá jamais as pinceladas de Van Gogh.

Ambos conviverão por muitos séculos, com a tecnologia modificando apenas o modo como o livro e a impressão no papel são criados.

Até que a concorrência do disquete seja realmente ameaçadora, muita discussão vai rolar, como o fim da escola, a Universidade Virtual, onde o contato direto entre pessoas será abolido, além da questão ética da invasão da privacidade e dos direitos autorais.

Mas nessa questão toda, preocupa-me apenas o seguinte: com as já conhecidas diferenças sociais brasileiras, como resolver o problema dos excluídos do livro, e, pior, do recém-formado exército dos “tecnologicamente excluídos”?