O Supremo Tribunal Federal tem pautado todos os diálogos de nove em cada 10 brasileiros. Isso porque está julgando o maior processo de sua história, a Ação Penal 470, mais conhecida como “Mensalão”. Entender o que se passa no STF pode revelar dicotomias existentes no país, como o financiamento público de campanha, já o uso de caixa dois é um dos motivos para levar vários dos 38 acusados à cadeira de réus.
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças, além de inúmeras outras titulações, o jurista Ives Gandra Martins dá uma aula quando o assunto é conjuntura política e econômica brasileira. Um homem letrado, como poucos no país, Ives Gandra é uma figura sempre requisitada em conferências e simpósios, que soma mais de 500, ao redor de todo o planeta. Tem também em seu currículo mais de 40 livros escritos, com tradução para mais de 17 países.
Para ele, o “Mensalão” é um divisor de águas no país. Embora haja tanta expectativa por parte da mídia e da sociedade, Ives Gandra acredita que não há como prever o resultado. “Eu mesmo, com 55 anos de advocacia, não consigo prever como votarão os Ministros, embora, por sinalizações, alguns deles parecem ter apontado para eventual direção de seu voto no entendimento da questão. Trata-se de um julgamento em que as previsões dos mais experientes advogados podem falhar”, afirma o jurista.
Na análise que fez na entrevista a seguir, além da corrupção, Ives Gandra, parafraseia Monteiro Lobato, apontando que país precisa se livrar de vez de outro mal que corrói seus alicerces – o excesso de burocracia: “ou o Brasil mata a burocracia ou a burocracia mata o Brasil”.
– Depois de passados sete anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento do “Mensalão”, o maior escândalo político brasileiro. Em sua opinião, o que se esperar dele?
– O julgamento é a questão, da história do Supremo Tribunal Federal, de maior repercussão popular, com todos os olhos da sociedade voltados para uma solução. A expectativa da mídia e da sociedade é de que haja condenação, pois houve um volume de dinheiro que circulou entre empresas, partidos e pessoas vinculadas aos acusados, sem justificativa. O povo, pois, espera que a decisão venha a mudar, se de condenação, os costumes políticos do Brasil. Por outro lado, os advogados de defesa, com habilidade e inteligência, procuram desfocar a acusação de um crime sistêmico para o crime comum ou o de caixa dois, que já teria prescrito, pois, o prazo máximo para ser aplicada a pena é de 6 anos após a prática do delito. Enseistre as duas teses (crime sistêmico e caixa dois), deixando de lado outros aspectos, o STF se posicionará.
– A grandiosidade desse processo o tornou o maior já julgado no Brasil, batendo todos os recordes do STF. A tendência, em seu ponto de vista, é que esses 38 réus sejam condenados ou inocentados?
– Voltando de Brasília, na última sexta-feira, encontrei advogados dos réus do mensalão e todos eles entendem que, pela primeira vez, é difícil prognosticar. Eu mesmo, com 55 anos de advocacia, não consigo prever como votarão os Ministros, embora, por sinalizações, alguns deles parecem ter apontado para eventual direção de seu voto no entendimento da questão. Trata-se de um julgamento em que as previsões dos mais experientes advogados podem falhar.
– Qual será o futuro do PT após o “Mensalão”?
– Qualquer que seja o resultado, houve maculação da imagem do PT, principalmente após seu tesoureiro ter confessado que cometeu o crime de caixa dois, que implicaria, todavia, em uma não condenação por prescrição (pena máxima de três anos, prescrição com o dobro da pena, em seis anos, prazo este já decorrido). Se o próprio partido admite que captou recursos contra a lei, à evidência, sua imagem já está maculada.
– Caso os réus sejam condenados, haverá sobrevida pública a algum deles?
– É difícil dizer. Alguns deles já foram eleitos, apesar da acusação anterior e de provas materiais de recebimento de recursos em caixa de banco. Vale dizer, para sua reeleição, o mensalão não prejudicou. Creio, todavia, que, para a maioria, já pesou o fato de serem réus e poderá pesar ainda mais, se forem condenados.
– E como fica o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva?
– O presidente Lula parece ser inatingível. No período mais difícil do “mensalão”, ou seja, à época das CPIs, continuou intocável, não tendo havido carga sobre ele nem dos acusados, nem dos acusadores. O certo, todavia, é que uma grande dúvida ficou. No início, disse ele que foi traído, depois, que não sabia de nada e, por fim, que o mensalão nunca existira. Qual das três afirmações corresponde à verdade, todas feitas por ele? Haveria uma quarta hipótese? Só mesmo o próprio expresidente para responder.
– Como analisa a postura da presidente Dilma Rousseff, que não se pronunciou sobre o processo?
– Entendo que faz bem. Não é ela, nem seu governo que está no banco dos réus. Não há porque envolvê-la.
– Este julgamento seria a oportunidade de provar que a impunidade, um dos maiores males da nação, estaria com seus dias contados?
– A nação espera que, conforme seja a decisão da Suprema Corte, os costumes políticos começariam a ser mudados, embora a história da humanidade, como demonstrei no meu livro “Uma breve teoria do poder” indicar que, onde há poder, há corrupção. O povo, todavia, espera que uma condenação representaria a mudança de eixo para um Brasil mais limpo. Ocorre que a Suprema Corte, que é um tribunal técnico, mesmo quando examinando questões políticas, irá decidir com aquilo que está escrito nos autos e pelo conjunto das provas, dos indícios e pelo teor das acusações e defesas.
Se decidir pela absolvição coletiva ou a dos principais nomes envolvidos, todavia, provocará uma sensação de que nada mudou no país, mesmo que a decisão tenha sido a mais justa, o que se coloca aqui como hipótese, pois não li os autos e não tenho condições de avaliar só pelas peças orais quem teria razão.
– Do que trata a questão?
– Parece-me que a questão posta no Supremo transcende de muito às questões técnicas para a sociedade, o que torna ainda mais imprevisível seu resultado. É de se lembrar que até hoje comemora-se a Revolução Francesa a partir da queda da Bastilha, que, ao contrário do que se pensava, não tinha presos políticos e entre os sete encarcerados comuns, um deles era insuficiente mental.
O símbolo, todavia, da derrubada gravou para sempre a Revolução que lançou os três famosos pilares de uma democracia (liberdade, fraternidade e igualdade), que Kant considerava estar muito acima, como princípios, do que o movimento. O símbolo valeu mais que os fatos. De certa forma, é o que o povo espera em decisão que seja um símbolo do combate à impunidade, algo que transforma a tarefa do Pretório Excelso em algo muito mais difícil e, indiretamente, muito mais imprevisível.
– No Brasil, ainda há quem concorde com Charles de Gaulle, que declarou que este não é um país sério. Há alguma verdade nessa afirmação?
– De início, não é certo que De Gaulle tenha dito que “Le Bresil n’est pas un pays sérieux”. À evidência, é uma afirmação infeliz, porque todos os países têm seus momentos bons e maus e, em matéria de corrupção, como – repito – mostrei no meu livro “Uma breve teoria do poder”, em nenhum espaço geográfico, em nenhum período histórico houve países sem corrupção. O problema está no nível de corrupção, que, em alguns países, é muito maior do que em outros. Na França, inclusive, em sua história, a corrupção jamais foi eliminada. Por esta razão, não é certo de que De Gaulle tenha dito o que disse, nem há verdade na frase que circula como de sua autoria.
– Como tornar a Justiça brasileira menos lenta?
– A E.C. nº 45/05 procurou torná-la menos lenta e o CNJ com a “meta 2” procurou implantar as medidas decorrentes da E.C. 45/05. Há, todavia, uma burocracia asfixiante que ainda envolve a Justiça, em muitos setores necessitando inclusive de informatização plena. Participei da banca de três concursos da magistratura, ou seja, dois para a magistratura federal e um para a magistratura estadual e, no exame de mais de sete mil candidatos nos três concursos, nossas bancas aprovaram respectivamente, 19 e 21 nos dois da federal e 57 naquele da estadual. Entre os magistrados aprovados para a magistratura, todos estão preparados do ponto de vista jurídico, mas percebe-se que a primeira motivação de todos eles é a segurança pessoal que um cargo e uma função pública lhes permite.
O servir ao público é decorrencial, visto que quase todos prestam concurso para todos aqueles que aparecem (delegado, procurador, membros do ministério público etc.), assumindo a vaga que conquistaram. São competentes, no curso do exercício da função de julgadores, adquirirão a experiência, mas acostumam-se, rapidamente, a ser autoridades, com o que as críticas a esclerose da máquina pública, inclusive a judiciária, pouco lhes atinge, pois estão acima dos cidadãos normais em garantias, subsídios, aposentadorias e direito de julgar. São “Excelências” e não “Senhorias”.
– O Judiciário é o poder que tem menores índices de corrupção?
– Apesar de ser o poder onde a corrupção é consideravelmente menor, sua capacidade de desburocratização é tanto maior, com o que não contribuem decididamente para reduzir a lentidão da Justiça. Por serem inimputáveis no exercício da sua função, terminam por definir o “tempo e a hora” dos julgamentos, jamais os prazos da lei para julgar sendo cumpridos.
A isto se acrescente os meios protelatórios dos advogados, principalmente do poder público, os compromissos extratécnicos de conferências, aulas, livros etc., legislação complexa e percebe-se que há muito a mudar no que diz respeito à lentidão da Justiça.
Todos nós, operadores do direito, magistrados, advogados, membros do Ministério Público, parlamentares temos, todavia, responsabilidade pela lentidão da Justiça.
– O excesso de burocracia é um dos maiores problemas?
– Claramente, o é. O Brasil não evolui economicamente, por excesso de tributos, excesso de burocracia, excesso de encargos trabalhistas, excesso de juros e falta de política cambial e econômica a longo prazo e de convivência internacional. De todos eles, o pior é o excesso de burocracia que se costuma dizer que é o que conforma o “Custo Brasil”.
– Essa burocracia causa transtornos ao país e, segundo a Fiesp, chega a custar R$ 46 bilhões por ano aos cofres públicos. E chega em todas as esferas, como no Judiciário, em que há quase 87 milhões de processos em julgamento. É possível acabar com essa cultura burocrática?
– Em artigo escrito para um dos grandes jornais do Brasil disse, parafraseando Monteiro Lobato, que “ou o Brasil mata a burocracia ou a burocracia mata o Brasil”. Alvim Tofler denomina os burocratas de os “integradores do poder” porque são mais estáveis que os políticos e são imprescindíveis para estes. Como na série “Stargate” são o povo robotizado dos “replicadores”.
Multiplicam-se como cogumelos e uma vez enquistados no poder, é difícil derrubá-los. E para se justifi carem vão também multiplicando os encargos sobre a sociedade. Precisaria haver uma revolução de mentalidade para mudar esta cultura. Tinha-se a impressão que com a informática seria possível alterar estes comportamentos. Ledo engano.
– A perda da ética é o câncer da política brasileira?
– A perda de ética tem um antecedente na perda de valores, de início familiares, depois de costumes, que desembocam na perda de ética no comportamento em geral. A desfiguração da família, a leniência com determinadas condutas sociais, a ideia de que todos têm que levar vantagem em tudo, acabam por tornar a sociedade aética e imoral, à luz da densidade ôntica decorrente da origem diversa grega e romana de ética e moral. Indiscutivelmente, é o câncer da política brasileira.
– O Brasil precisa, com urgência, de uma reforma política?
– Precisa, mas é difícil. Temos brasileiros que valem politicamente mais que outros. Um eleitor do Acre, de Tocantins, de Roraima vale mais que um eleitor de São Paulo, Minas ou Rio. E isto gera distorções como, tanto a Câmara como o Senado, terem uma maioria de parlamentares representando a minoria da população brasileira. Tais desfigurações geram também desníveis em todas as áreas. Não há, todavia, como ter uma representação popular correspondente a sua população no Congresso, por que se teria que mudar a composição daqueles que lá estão.
O custo político do Brasil é tão grande quanto o custo burocrático. O que me leva a reiterar o que escrevi para artigo ao Estado de São Paulo, em 1991, de que a “Federação Brasileira não cabe no PIB”.
– A criação de um financiamento público de campanha seria a solução para o fi m do uso de caixa dois?
– Defendi tal proposição na Comissão presidida por Carlos Mário Velloso, quando presidia o TSE e em artigo para o livro que ele e Cármen Lúcia Antunes Rocha coordenaram sobre o Sistema Eleitoral. Hoje, entendo que não deveria haver limite de recursos para as campanhas, como ocorre nos Estados Unidos em que o tudo é aberto, livre e declarado. Eliminados os limites, eliminam-se os caixas dois. E o problema do abuso do poder econômico, hoje, é muito menor por força de uma maior consciência dos eleitores e, ao mesmo tempo, da definitiva entrada do sindicalismo operário nas disputas eleitorais com disponibilidades humanas e financeiras elevadas.
– A regulamentação dos lobistas, intermediários entre o que é público e o que é privado, também seria uma saída?
– Sou favorável à regulamentação do “lobby” para evitar a intermediação espúria. Nos Estados Unidos, têm a dignidade de uma profissão reconhecida.
– A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou uma Proposta de Emenda Constitucional que permite ao Congresso sustar decisões do Judiciário. Essa medida é prejudicial ou saudável a nossa democracia?
– Para mim, tal disposição já existe no artigo 49, inciso XI, da Constituição Federal assim redigido: “Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: XI – zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes…” O que é zelar? Se eu não tenho força para zelar, de nada vale o dispositivo constitucional. Só terá valor se realmente, ao zelar possa o Congresso nulificar as decisões do Judiciário que invadam sua competência.
Caso contrário, seria um dispositivo inútil, no máximo para reflexão acadêmica, pois dizer que zelar seria pedir ao Poder Judiciário invasor de sua competência que não a invada, é como pedir o cordeiro ao lobo que não o mate porque não está turvando suas águas. “Zelar” implica o poder de “anular” para que o zelo seja eficaz.
– A Constituição de 1988 já está 25% maior do que seu texto inicial. Ela precisa, de fato, passar por tantos aperfeiçoamentos?
– A Constituição atual é boa na sua espinha dorsal: equilíbrio de poderes. É, todavia, adiposa. Precisa de aperfeiçoamentos e um regime dietético, mas no essencial é uma excelente Constituição.
– Apesar de a Constituição ser rica em direitos a pessoa, que inclusive aparece antes do Estado na topografia da Carta, as desigualdades socioeconômicas em nosso país ainda são gritantes. O que fazer para reduzir esse abismo social?
– O Brasil é a sexta economia do mundo e seus cidadãos levam 35% do que ganham, em tributos, para o Estado. Há, pois, recursos, que, todavia, são mal geridos por excesso de burocracia e escassez de competência gerencial. Veja-se o PAC. Há recursos em caixa, mas não avança. Por outro lado, em 2011 as despesas de custeio, inclusive previdência, foram de 195 bilhões de reais contra 41 bilhões de investimentos. A própria Bolsa Família custou menos de 20 bilhões, o que não é nada em face da enormidade dos recursos que morrem na máquina burocrática e nas reivindicações cada vez maiores de subsídios e benefícios dos detentores do poder. Gastando muito com a própria estrutura burocrática, inclusive vencimentos, sobra pouco para programas de desenvolvimento econômico e social, razão pela qual os desequilíbrios continuam.
– A redução da carga tributária ajudaria nesse sentido?
– Muito. No Movimento Brasil Eficiente, Paulo Rabello de Castro, João Dória, Carlos Schneider e eu temos batido na redução da carga tributária. Nossa proposta tem sido debatida a partir de dois princípios básicos: 1) simplificação do sistema que reduziria o custo da administração do tributo e 2) redução do peso da carga, com elevação da eficiência no gasto público. No site http://www.brasilefi ciente.org.br/ encontra-se nossa proposta.
– Embora o país seja, hoje, a sexta maior potência econômica mundial, a cultura e a educação não acompanharam esse crescimento. Por quê?
– Lamentavelmente, não. Infelizmente, o setor privado da educação tem sido assolado por uma invasão de exigências tributárias, pois o governo, ao rever o conceito constitucional das imunidades “pro domo sua”, tem inviabilizado inúmeros empreendimentos.
Ao invés de incentivar, tributa a educação, inclusive não permitindo deduções acima de um determinado limite de gastos com educação do imposto de renda para quem busca melhores condições de aperfeiçoamento. É um fantástico incentivo à ignorância. Só quem cursar escolas baratas pode deduzir! Há uma política, a meu ver, míope do Governo de querer tirar do 3º setor recursos tributários, encarecendo o setor, pois os que terminam pagando pelos tributos são os alunos. E tal política já fechou muitos estabelecimentos de ensino. O mesmo se diga no setor cultural. Não sem razão, o Brasil não tem até hoje nenhum Prêmio Nobel. A mudança de visão, principalmente da Fazenda, que deveria ser de incentivar ações e não de cobrar tributos, seria um bom começo.
Fonte: Revista Brasília em Dia. Edição 11 à 17 de agosto de 2012 – ANO 15 – Nº 806