Arquivo de Novembro 2011

Fernando Pessoa, Viver Simultâneo

Novembro 22, 2011

Por BEATRIZ  ALCÂNTARA

Fernando Pessoa, pessoa simultânea.

Próximo a se completarem oitenta anos de morte do mais citado escritor português, depois de Camões, inúmeras controvérsias não têm cessado de sobrevir. O esquecimento ou a indiferença são ocorrências que de nenhum modo lhe podem ser afixadas, tanto ontem como nos dias correntes. A mais simples menção à palavra “Pessoa”, suscita um levantar do olhar, ouvidos atentos ao que vai ser falado, uma concordância ou discordância mas o alheamento à referência, quando ocorre, apenas aos desavisados se pode atribuir.

O poeta português FERNANDO António Nogueira PESSOA (1888-1935) apresentou, desde os primeiros instantes de sua escrita literária, como autor de uma vivência plural, ainda quando a constatação só tenha vindo a surgir no decorrer da carreira. Seu percurso nas letras manifestou-se como a intelectualidade mais múltipla e simultânea de todo o vasto universo cultural em língua portuguesa, Fernando Pessoa, um ser poliédrico, polimático, único e plural.

Inquietação e inventividade.

Na trajetória do poeta, desde muito cedo, uma característica evidenciava-se na personalidade. A aparência de menino dócil não coadunava com o que lhe ia na alma insubmissa: aos seis anos imaginou um amigo ilusório, um interlocutor, um apoio à solidão, o Chevalier de Pas; aos 12 anos cultivou outro companheiro presumido, Alexander Search (1888-1908) este ocasionalmente se fazendo acompanhar de um irmão, Charles, o primeiro  revelando-se uma personalidade literária simultânea à vida própria do autor e a quem alguns estudiosos afiançam como sua “primeira voz”. No “Pacto com o diabo”, atribuído a Search, ele atribui, na condição de diabo e espírito de luz, a razão de ser e avançar mundo afora até romper o abismo de si,

                        A maldição de Deus está sobre nossas cabeças!

                        Deixemos que os nossos lábios derramem irreverência!

Na adolescência, quando por via de regra tendem a desaparecer os colegas e amigos da fantasia juvenil, Fernando Pessoa permaneceu no convívio com seres imaginários, então já de algum modo idealizados.  Proximamente, surgiram mais personagens fictícios, Charles Robert Arron, H.M.F. Lecher, Joaquim Moura Costa e Pantaleão, todos vindo a ser considerados como precursores do processo heteronímico, o embrião da poesia de fase adulta pessoana.  Nesse ponto, convém destacar que a propriedade dos versos de Pantaleão contra a monarquia e de militância republicana colocaram-no em escala acima dos pré-heterônimos.

Em 1905, quando do seu regresso da África do Sul, surgiu a personalidade literária Dr. Gaudêncio Nabos (jornalista e humorista anglo-português), que o acompanharia ao longo de toda a viagem e cujos textos, na maioria paradoxal, foram em língua inglesa.

Guardiã do legado literário contido no “baú”, também conhecido por “arca” de Fernando Pessoa, Dra. Teresa Rita Lopes referindo-se Joaquim Moura Costa e Pantaleão denomina-os de “pré-heterônimos”.

Certa feita, num congresso ocorrido em Lisboa no Palácio Ceia da Universidade Aberta, a professora-especialista afirmou que o espólio literário de Fernando Pessoa contaria, na sua totalidade em torno de 27.000 documentos, menos da metade em estudo, e a cada página de folhas soltas ou não, cabendo inscrições de vários fragmentos de texto, alguns lançados a esmo sobre papel avulso ou cadernos e, por tal razão, eles nem sempre se tornavam passiveis de identificação conclusiva, tendo em vista as 72 personalidades literárias, 68 pessoas, 03 heterônimos e 01 ortônimo.

Detalhe-se, posto que a mesa-redonda se volta preferencialmente para aspectos políticos na obra de Pessoa, a importância de Joaquim Moura Costa e de Pantaleão no contexto da edificação heteronômica.

Joaquim Moura Costa (1907-10) colaborou com os periódicos O Phosphoro e O Iconoclasta, realizando poemas satíricos, cujos alvos preferenciais eram a Monarquia Decadente e a Igreja Católica. As sátiras de Moura Costa apresentavam-se por vezes tão radicais que, beirando a obscenidade, até ao próprio Autor desagradavam.

Pantaleão começou sendo um pseudônimo, mas à medida que foi se convertendo em militante republicano extremado, de personalidade facetada, seu trajeto evoluiu. Pantaleão tornou-se muito próximo dos irmãos Search, de tal modo que com eles veio a participar de O Livro da Transformação ou Caderno de Encargos, assim vindo a converter-se em personalidade literária.

Posteriormente, e só depois que os elogios ao Estado Novo caíram por terra e foram substituídos pelo desencanto, as críticas à política em Portugal foram retomadas (1935), acreditando-se terem voltado guiadas pela verve de Moura Costa e Pantaleão.

            Um fato em Estado Novo

Meu Pobre Portugal,

            Dois-me no coração.

            Teu mal é o meu mal

            Por imaginação.

 

            Tão fraco, tão doente,

            E com a boa cor

            Que a tísica põe quente

            Na cara, o exterior.

 

            Meu pobre e magro povo

            A quem deram, às peças,

            Um fato em estado novo

            Para que o não pareças!

 

            Tens a cara lavada,

            Um fato de se ver

            Mas não te deram nada,

            Coitado, que comer.

 

            E aí, nessa cadeira,

            Jazes, apresentável.

            (…)

            O transeunte amável.

                                                (selecionado de Fernando Pessoa, Salazar e o Estado Novo,

do jornalista e professor João Alves das Neves)

1914, ano chave da heteronomia.

Alberto Caeiro surgiu em 8 de março. O mestre de todos, o autor do “Guardador de Rebanhos”, provocou com o referido poema uma resposta posterior de Fernando Pessoa, ortônimo, em “Chuva Oblíqua”, texto campo para se achar o interseccionismo.

                          O Guardador de Rebanhos

                     I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente.

…………….

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do Sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos…

                                                                                     Alberto Caeiro

A 28 de janeiro apareceu Ricardo Reis, embora Pessoa o tenha imaginado ou apenas esboçado desde 1912. Um discípulo de Alberto Caeiro que levou o paganismo pessoano ao grau máximo, enquanto imprimiu modernidade no fazer literário.

                                                                    Ode VI

                                   Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

                                   Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

                                   Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

                                               (Enlacemos as mãos.)

                                   Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

                                               Mais longe que os deuses.

                                  

                                   Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente

                                               E sem desassossegos grandes (…)

Ricardo Reis

Em outubro, sem que se possa ter confirmação absoluta, veio a manifestar-se Álvaro de Campos, o engenheiro cosmopolita, de vanguarda, polêmico, aquele que tudo procurava pensar o sentir, de todas as maneiras. Maiores características: o cosmopolitismo, tão ao gosto refinado da época, mas atente-se, a polêmica seria a tendência segunda, insubmissa à primeira; o nacionalismo tradicionalista vindo do passado para clarear o presente. O nacionalismo integral vai ao presente e ao passado para descobrir o presente. O nacionalismo cosmopolita busca o presente apenas no presente. (Da República)

 Lisbon revisited

                       

                        Não: não quero nada.

                        Já disse que não quero nada.

                                  

                        Não me venham com conclusões!

                        A única conclusão é morrer.

                                  

Não me tragam estéticas!                                                                           Não me falem em moral!

                                  

                        Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

                        Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

                        Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

                        Com todo direito a sê-lo, ouviram?

                                  

                        Não me macem, por amor de Deus! (…)

Álvaro de Campos

Ocorre mencionar um fato da vida particular de Pessoa para que se tenha em conta o quanto a personalidade do heterônimo Álvaro de Campos sugestionou seu próprio criador.

Fernando assinava Pessôa (com circunflexo) até 1916, mas a partir de então retirou o acento ao sobrenome afim de que o mesmo se tornasse mais universal, mais facilmente pronunciável por idiomas estrangeiros de expressão, a exemplo, a língua inglesa. Pessoa cosmopolita, Pessoa cidadão que se queria participe de um mundo efervescente, ecos talvez da vida parisiense buliçosa narrada pelo amigo pessoal, o escritor Mário de Sá Carneiro.

No outono de 1914, o poeta achou-se a meio uma demorada depressão. Nessa época sobreveio o surgimento do semi-heterónimo Bernardo Soares, com trechos advindos de escrita anterior e agrupados no Livro do Desassossego.  Registre-se ser esse personagem fictício tido por muitos estudiosos como o mais próximo da personalidade do autor, Fernando Pessoa, ele mesmo.

Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer… De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar sentindo… Uma inteligência aguda para me destruir, e um poder de sonho sôfrego de me entreter… Uma vontade morta e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo… Que há de alguém confessar que valha ou que sirva? Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações

Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei… Em mim o que há de primordial é o hábito e o jeito de sonhar. As circunstâncias da minha vida, desde criança sozinho e calmo, outras forças talvez, amoldando-me, de longe, por hereditariedades obscuras a seu sinistro corte, fizeram do meu espírito uma constante corrente de devaneios. Tudo o que eu sou está nisto, e mesmo aquilo que em mim mais parece longe de destacar o sonhador… Cheguei àquele ponto em que o tédio é uma pessoa, a ficção encarnada do meu convívio comigo.

                                                                                          Bernardo Soares

Destino fingidor.

Faz-se oportuno deter um pouco acerca da heteronomia por não se revestir de procedimento literário habitual, no presente como no passado. Os pseudônimos são freqüentes no universo das letras, mas a heteronomia, tal como se evidenciou na obra pessoana, há de se convir ser inesperada a evidencia de um poeta em grau de excelência diferenciada, ainda que, confessado pelo mesmo, o fato seja revelador de uma mente desassossegada, fragmentada, a transbordar sensações em demasia.

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me
.

Menciona-se, outra vez, Teresa Rita Lopes, por oportuno um pensamento seu assertivo de que pelo menos duas perguntas teriam norteado vida afora, senão obra adentro do escritor múltiplo.

A primeira pergunta seria – Quem sou? Questão surgida entre os 13 e 14 anos de Pessoa, contemplada por uma idéia patriótica conferida, talvez a partir de um problema de identidade e idealização nacionalista.  Note-se que ele saiu de sua terra lusitana para ir viver na companhia da mãe, em um novo casamento, num outro continente, vivenciando novo idioma, quando tinha apenas 7 anos e o regresso só vindo a ocorrer, muito tempo decorrido, com a idade de 17 anos. Toda a formação escolar de Pessoa foi em língua e em terras de domínio inglês.

Rita Lopes ressaltou em seus estudos, que o poeta era um autodidata em língua portuguesa, os expoentes que lhe eram dado estudar achavam-se entre William Shakespeare, Francis Drake, Henry Hudson, James Weddell, e outros mais, enquanto os grandes vultos das letras, das artes e da  história de Portugal se apresentavam não mais que pelas figuras míticas como Vasco da Gama, Camões e Inês de Castro, todas referências ocasionais, aqui e ali mencionadas, de passagem, apenas em ambiente doméstico.  Quando Fernando Pessoa voltou para Portugal, regressou a uma pátria idealizada, achou-se perante uma monarquia desgastada a gerir um país em convulsão. Nada havia da nação imaginada. O jovem poeta evolui rapidamente para uma militância republicana convicta, ávido por tudo captar e conhecer da terra quase desconhecida. Integrando-se ao ideário político vigente, aproximou-se da maçonaria, mas conservou ainda uma certa religiosidade, talvez em busca de uma  descoberta do ser.

Quem somos? – viria como a segunda indagação.  Pessoa vivenciou os descompassos dos últimos anos monárquicos e os anos de crise social e econômica de uma iniciática época republicana, exclamando, Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra… tudo é incerto e derradeiro,/ tudo é disperso, nada é inteiro. (“Nevoeiro”, Mensagem)

Diante seus olhos havia um Portugal entristecido, esvaziado de feitos memoráveis, uma pátria abandonada pela glória dos feitos heróicos, destituída de seus antigos navegadores. Movido pela angústia da busca de feitos patrióticos extraordinário no seu tempo presente, confidenciava, Eu quero ser um criador de mitos.

Voltou-se Fernando Pessoa para o intento de ressuscitar e reinventar vultos lusitanos.

Vasco da Gama e D. Sebastião converteram-se nos seus prediletos.

Ao enveredar por D. Sebastião, o moço rei desaparecido em campo de batalha patriótica, logo o poeta aportaria ao tema do V Império, num desejo ávido por congregar os portugueses em torno de uma causa comum, a reconstrução da pátria pelo V Império, o império da língua portuguesa arrebanhando e aglutinando, num grande mutirão patriótico, a causa da língua pátria, Minha Pátria é a língua portuguesa (Bernardo Soares).

 Uma terceira pergunta poderia surgir como apoio a seu ideário. Para onde se encaminha o futuro? Processo em curso por meio do qual o autor extrapolaria a individuação em prol do ser múltiplo, atuante, associativo e contestatório.

No Modernismo português Pessoa foi expoente a contestar o marasmo intelectual, a decadência artística e as estratégias políticas desvirtuadas.  Citem-se alguns de seus companheiros: na Geração de Paris I (1914) Santa-Rita Pintor; vindo da Geração de Paris II (1920)  Almada Negreiros e Pardal Monteiro; na revista Orpheu (1915) – Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros; na Presença (1927) – José Régio, Miguel Torga, Adolfo Casais Monteiro, Aquilino Ribeiro e Ferreira de Castro, todos de grande vulto.

A militância, ou melhor, o envolvimento político veio em decorrência. Os ensaios políticos surgiram por volta de 1919. Escreveu e publicou  na Ação do Núcleo de Ação Nacional: “Como Organizar Portugal” e “Opinião Pública”, contudo eles não obtiveram grande repercussão, a instabilidade político-social da nação suplantava a crítica. Os ensaios anteciparam-se à hora certa, a urgência ainda não era sentida pelos demais contemporâneos.

Na mesma época escreveu vários artigos em defesa e a propósito de companheiros molestados pela censura, tais como Antonio Botto, Raul Leal e Antonio Ferro, alvos de ataques ferinos sempre repelidos com as palavras veementes de Pessoa, como em “Sobre um Manifesto de Estudantes” e “Aviso por Causa da Moral”.

O acompanhamento e a participação na marcha dos acontecimentos políticos passou a integrar sua vida pessoal: em Março de 1928, após grave crise social e política, é eleito presidente da República, General Antonio Carmona; a 27 de Abril de 1928, o professor de Direito da Universidade de Coimbra, Antônio de Oliveira Salazar tomou posse das Finanças de Portugal, “Logo se adivinha que o limitado objectivo da sua chamada ao poder vai ser transcendido…é a clara ditadura”(João Ameal); 5 JULHO 1932, “o que se segue é o seu lógico…Salazar toma a Presidência do Conselho. O Estado Novo Corporativo organiza-se, articula-se pela publicação da Constituição Política de 11 de abril de 1933… surge , dentro e fora das fronteiras, a interrogação persiste: quem é Salazar?” (João Ameal).

                        Antonio de Oliveira Salazar.
Trez nomes em sequencia regular…
Antonio é Antonio.
Oliveira é uma arvore.
Salazar é só apelido.
Até aí está bem.
O que não faz sentido
É o sentido que tudo isto tem.
                                                                                  29-03-1935

Entre 1923 e 1924, Fernando Pessoa publicou Mensagem, recebida com críticas, entre outras, de seu amigo Adolfo Casais Monteiro.  A carta a Adolfo Casais Monteiro que escreveu em janeiro de 1935 mostra-se rica em detalhes, do próprio punho do poeta e portanto a inclusão de em alguns trechos  se asseverara como de valia para o entendimento das idéias políticas do autor de Mensagem. Conhecedor da “independência mental” de Casais Monteiro, o poeta respondeu às três perguntas formuladas pelo amigo: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) gênese dos meus heterônimos, e (3) ocultismo.

Aceitando as críticas à publicação de Mensagem e reconhecendo a faceta nacionalista da obra, respondeu, sou, de fato, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Em seguida o Autor esboçou um projeto de publicação de suas obras, que o tempo mostrou não vir a ser cumprido e que ele próprio desdenhou ao planejá-lo, contudo, uma reflexão surgiu em tom de desabafo,  pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida de música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.  Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples.

A segunda resposta, gênese dos heterônimos, foi absolutamente direta, sem qualquer tentativa outra que abolir, de vez, questionamentos repetitivos: a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos… não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contato com outros…vivo-os eu a sós comigo.

Na última resposta à carta, o poeta pouco se deteve no ocultismo, referiu-se apenas à existência de mundos superiores o nosso… em experiências de diversos graus de espiritualidade… e esses universos coexistem com o nosso… Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita a expressão “Deus”, dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer “Grande Arquitecto do Universo”…

Em outra carta, em nova confidência, F.P. escreveu: Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso me basta. De modo que à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante.

Exilado no Brasil, Adolfo Casais Monteiro persistiu nas críticas à publicação de Mensagem por reconhecer na obra um caráter nacionalista exacerbado, com indiscutíveis sinais messiânicos.

Pessoa era um espírito livre e independente. As suas posições políticas, muitas vezes vistas como contraditórias, simplesmente não se enquadravam nos sectarismos e partidarismos existentes na época. Sobre quase tudo, tinha uma opinião singular, por vezes surpreendente, assim afirmou José Barreto do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, por ocasião das comemorações dos 120 anos de nascimento do poeta da heterônomia.

A política em Pessoa ateve-se, acima de tudo, às críticas ou aos elogios registrados em artigos. Suas convicções, muitas vezes contraditórias, consistiram numa oposição constante, num questionamento firme ao estabelecido, revelando vivência única, passível de acolhimento apenas pelo desassossego.

Afirmamos sem temor, que se a política de Fernando Pessoa consistiu no questionamento desassossegado e sua práxis literária fincou-se no Interseccionismo, os dois aspectos em contundente confronto com a estagnação dos ideários políticos, sociais, literários ou econômicos da época. Época marcada por dias fortes, conturbados, instáveis, acrescidos pela angustia pessoal do escritor, ampliada e conduzida pelos acontecimentos político-sociais que atravessaram Portugal, como em grande parte da Europa.

Ao sabor dos pensamentos, mensagens e confissões do maior poeta português do século XX, Fernando António Nogueira Pessoa, as palavras com que encerro essas observações possuem o paladar dos cristais de sal a conservar os feitos por entre o mar português nunca por tantos intrépidos aventureiros navegado, nem a sorte permitindo versos tão ao aconchego da alma humana pela habilidade exponencial de seus poetas, Camões e Pessoa, sentimento, arte e engenho a narraram os feitos heróicos da pátria.

No côncavo de minhas mãos guardo uma saudade imensa da terra e das gentes do outro lado do mar, saudade peninsular, lusitana, que o tempo ao passar não desfez, antes acrescentou-lhe o endosso de palavras presas ao registro de MINHA PÁTRIA É A LINGUA PORTUGUESA.

Bem haja a todos os presentes!

BIBLIOGRAFIA

CABRAL MARTINS, Fernando, coord. (2008). Dicionário de Fernando Pessoa e do  Modernismo Português. Lisboa, Editorial Caminho, 959pp.

CAVALCANTI FILHO, José Paulo (2011). Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 734pp.

GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa, Filosofia/Relógio d’Água  Editores Lda, 252pp.

NEVES, João Alves das (2009). Fernando Pessoa, Salazar e o Estado Novo, Santo André-SP,  Fabricando Idéias, 127pp.

PIZARRO, Jerónimo (2007). Fernando Pessoa: entre gênio e loucura – vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 237pp.

PÓS-ESCRITO. Curiosamente, logo após a palestra e a mesa-redonda pessoanas em São Paulo, inúmeras questões foram levantadas como a requererem um maior detalhamento do tema. As respostas dos palestrantes foram sucintas, como requeria a ocasião, mas para o fato fiquei atenta.

Agora, quando me foi solicitado um trabalho para publicar na Revista da Academia Cearense de Letras – 2011, ocorreu-me distender o tema tendo o intento de detalhar os tópicos aludidos quando do nonagésimo aniversário do Clube Português de São Paulo.

Por tal modo, uma participação preparada para 20 minutos, no presente formato foi acrescida, o tema expandido e o texto tomou dimensões de artigo.

Poesia pelas árvores do Ibirapuera

Novembro 16, 2011

O Parque Ibirapuera está recebendo novos hóspedes e já se acostumou com outros recém-chegados, todos eles vindos do universo artístico da cidade. Um deles é a instalação “Caminhos Efêmeros da Poesia”, da poeta Rita Alves, que chegará ao parqueem novembro. A intervenção consiste em gravar frases e poemas no asfalto e em meio às raízes das árvores que margeiam o Lago próximo à Praça da Paz, num trajeto de aproximadamente600 metros.

Os poemas serão grafitados pelos Gêmeos da Arte, Anderson e Robert Pinheiro, aliando versos, artes visuais, propostas culturais e ambientais. A ideia de concretizar a poesia pelos caminhos do parque foi do diretor do Parque Ibirapuera, Heraldo Guiaro, que pretende abrir a possibilidade de se utilizar este espaço para novas intervenções efêmeras.

No mesmo dia, haverá a instalação da obra “Poesia não tem Hora” – também criação de Rita Alves e do artista plástico e publicitário Lee Swain, que montará um relógio de sol em meio ao parque. A cada hora marcada, uma poesia representará o numeral em placas de pedra. Serão 12 placas de formato irregular, com 12 poesias gravadas de 12 artistas diferentes. As pedras serão colocadas em torno de uma árvore, e a sombra desta árvore fará o papel do ponteiro, assinalando as horas em cada uma das poesias.

Os visitantes poderão pisar nas horas e nas placas dos versos e escolher a leitura de poetas contemporâneos como Alice Ruiz, Lívia Garcia Roza, Guilherme de Faria, Reynaldo Bessa, Rita Alves, Roberto Piva, Luis Serguilha, Pedro Vicente Alves Pinto, entre outros.

A cerimônia de inauguração das obras será marcada por apresentações musicais de Os Chorões, Os Trovadores Urbanos, Quarteto de Música Instrumental da Escola do Auditório Ibirapuera, além da leitura de poemas por Luciana Vendramini, Jayme Periard, Cássio Junqueira, Pedro Vicente Alves Pinto, Guca Domenico e Heraldo Guiaro.

Fonte: http://catracalivre.folha.uol.com.br/2011/11/poesia-pelas-arvores-do-ibirapuera/

Anatomia do poder e a crise mundial

Novembro 16, 2011

Por Ives Gandra Da Silva Martins

A crise mundial é uma crise de poder, protagonizada pelos burocratas e políticos que comandam o mundo. 

Não é uma crise da sociedade, que não é livre na escolha dos burocratas e pensa ser livre na escolha dos políticos, mas, de rigor, apenas vota naqueles por eles mesmos selecionados, limitando o “cardápio” democrático.

Os burocratas, em parte concursados e em parte de livre indicação dos detentores do poder, buscam, de início, sua segurança pessoal, seu principal objetivo. A prestação de serviços públicos é um corolário não rigorosamente necessário e, decididamente, não o principal.

Dividem-se, os que integram a burocracia, em idealistas, conformados e corruptos. Os primeiros, mais escassos, uma vez, no serviço público pretendem servir, idealizam soluções, procuram melhorar a qualidade do que fazem e são, não poucas vezes, hostilizados, ostensiva ou silentemente pelo demais. Os conformados, como procuraram a própria segurança de vida, cumprem acomodadamente sua função, sem maior dedicação, sempre contando com as benesses dos privilégios oficiais. Os corruptos, que não são poucos, buscam o enriquecimento, a qualquer custo, vendendo favores, às vezes, até mesmo através da “concussão”, que é a imposição da ilicitude à sociedade, sem que esta dela possa se defender.

Os burocratas são, no mundo inteiro, uma classe em permanente expansão, criando funções, cargos, exigências, o que torna a máquina estatal cada vez mais pesada para a sociedade.

Grande parte da crise mundial decorre desta multiplicação burocrática, que transforma o Estado em carga tão onerosa sobre o povo, que este mal pode sustentá-lo com seu trabalho e tributos.

Os políticos, por outro lado, também são divididos em 3 classes semelhantes. Os estadistas, que são poucos, idealizam um futuro melhor para a nação, mesmo à custa de seu sacrifício pessoal; os que querem o poder pelo poder, acostumando-se à ilicitude dos meios, como prática que, embora não desejada, a ela não se furtam para sobreviver; e, finalmente, os que têm na política a maior fonte de enriquecimento, todos os seus atos políticos tendo um custo, quase sempre sob o pretexto de que os recursos se destinam a seu partido, mas que, na verdade, em grande parte, vão para seu próprio bolso.

Não sem razão, em fins do século XIX, Adolfo Wagner, no seu livro sobre Economia Política, mostrava que as despesas públicas tendem sempre a crescer. O próprio orçamento de 2011 da União ofertou pouco mais de 10 bilhões de reais para o Bolsa Família e pouco menos de 200 bilhões de reais para a mão de obra ativa e inativa da União!!!

Neste quadro, há de se compreender que, no Brasil e nos países desenvolvidos, a carga tributária é alta, pois determinada pela carga política e burocrática. A diferença é que, apesar de a carga brasileira ser semelhante à dos países mais desenvolvidos e bem maior que a dos Estados Unidos, Japão, China, Índia e Rússia, os serviços públicos aqui prestados são muito piores. Vale dizer, sustenta, a sociedade, através de seus tributos, mais os privilégios dos detentores do poder do que o Estado prestador de serviços.

Ora, a crise financeira mundial – que é, fundamentalmente, uma crise da insensatez de todos os governos em não controlar o nível de sua dívida pública – tem neste componente do CUSTO BUROCRÁTICO E POLÍTICO um de seus mais agudos fatores, todos os governos devendo parcela considerável à sociedade poupadora, correspondente a elevados percentuais do PIB, como nos Estados Unidos (quase 100%), na Itália (130%) e na maior parte dos países, muito acima de 50%.

Ocorre que, o mercado financeiro não vive da moeda, mas da confiança de que a moeda aplicada em crédito será adimplida pelo devedor. Quando o devedor é um país, o dinheiro emprestado é quase todo aplicado, bem ou mal. Suas reservas são sempre inferiores a seu endividamento global.

A confiança de que, se exigido, poderá honrar os créditos tisnados, é que mantém o sistema. Quebrando-se, todavia, a confiança, quebra-se o sistema, interligado por força da velocidade de circulação da moeda e do crédito, em que os ativos financeiros existentes são consideravelmente superiores ao PIB mundial.

Neste quadro, a falência de confiabilidade na Grécia está levando ao desequilíbrio do sistema, pois se percebe que Irlanda, Portugal, Espanha, Itália e, talvez, até a França têm problemas que podem se agravar, tornando o “calote” oficial um desastre universal, principalmente, se algum dos países em crise não aceitar a contenção de despesas, por manifestação plebiscitária, provocando o abandono do euro. A busca por imposição de perdas ao sistema financeiro, sem inviabilizá-lo, é o único recurso para solucionar a crise de imediato, com o menor abalo possível na vida econômica e social dos povos, mormente quando esta atingir os países emergentes e menos desenvolvidos, que evoluíram no “boom” de2003 a2008, evolução essa que, embora o Presidente Lula tenha atribuído a seu governo, a verdade é que o País cresceu menos que os demais grandes emergentes, beneficiários daquela expansão.

Neste quadro, o desinchaço das máquinas burocráticas, única forma de serem superadas as crises, é uma imposição mundial e, no Brasil, algo difícil de ocorrer, porque atingiria burocratas e políticos, os grandes beneficiários deste inchaço.

Só mesmo com uma pressão, à evidência, sem as violências e selvagerias da primavera árabe, mas do povo sobre os governantes, por suas instituições privadas mais respeitáveis, poderia, a meu ver, começar a revisão do quadro, em que a eficiência e a moralidade tornar-se-iam os únicos atributos exigidos para os que pretendam exercer o poder.

Arte e os porquês da arte

Novembro 15, 2011

Por Dalila Teles Veras

Retorno a Louise Bourgeois, reproduzindo aqui uma outra anotação que fiz em minha indefectível caderneta, por ocasião da grande exposição retrospectiva da artista, “O Retorno do Desejo Proibido”, em agosto deste ano, no Instituto Tomie Ohtake,em São Paulo. Anotou ela em um papel ordinário e amarrotado, isto:

I do not

know

the

why.

and

I

do

not

need

to know the why

to do my work

or do I owe the

why to anybody

anybody

Com perdão da palavra, os esquizofrênicos (quem não é?), quando artistas (poucos o são, sabe-se), via de regra, são geniais (vide Pessoa e raros).

Cientes de sua própria insanidade mental, fuçam em compartimentos secretos da psique e acabam mexendo, por tabela, na nossa também (os observadores), perturbando-nos até não mais resistir.

Confesso que fiquei perturbada com o que vi naquela ocasião e pensei comigo: não gostei. Encontrava-me numa fase de pura leveza e aquilo me atrapalhava. Afinal, de Louise, eu só conhecia mesmo o óbvio, aquela aranha enorme, há séculos plantada na sala envidraçada do MAM, em São Paulo, que, vim a saber depois, faz parte de uma série denominada pela artista de Maman (referência psicanalítica à própria mãe que era tecelã, etc).

Bem, o fato é que, mesmo “não gostando”, anotei o pensamento da artista. E lendo agora essa anotação da anotação da artista, também me pergunto (psicanaliticamente?): sei mesmo para quê escrevo? preciso mesmo saber por quê escrevo ou por quê escrevem (ou fazem arte) os outros?

Questions, questions… always, que me faço (também em forma de provocação), neste dia em que a mídia nos lembrou à exaustão do cabalístico 11-11-11.

Um dia tão cabalístico que sequer me lembro onde estava precisamente às 11 horas e 11 minutos e sequer percebi qualquer movimentação estranha na terra ou nos seres, muito menos qualquer outro dos fenômenos previstos por videntes e apocalíptos de plantão.

Restou-me a adrenalina do constante questionamento

PORTUGUÊS, PALAVRA DE PAZ

Novembro 15, 2011

 Por Henrique Salles da Fonseca

ENQUADRAMENTO HISTÓRICO 

Na sequência do pedido de D. João III ao fundador da Companhia de Jesus para que trouxesse a sua Ordem para Portugal, no século XVII a Província do Oriente da Companhia tinha sede em Goa e jurisdição que se estendia do Cabo da Boa Esperança ao Japão. 

Pese embora não ser totalmente seu, este é seguramente um dos expoentes mais sublimes da História de Portugal.

A língua portuguesa era então franca desde os sertões brasileiros até aos confins do oriente e esta, sim, foi obra que totalmente se deveu ao engenho português.

E se dentre os europeus, nós fomos os primeiros a demandar o ultramar e os últimos a regressar, certo é que actualmente, limitados ao escasso território permitido, nos encontramos numa situação equiparável à que em 1415 justificou a conquista de Ceuta. Hoje, como então, urge ganhar dimensão «lá fora» como solução única contra o esmagamento europeu da nossa soberania.

Independentemente da capacidade que Portugal hoje tivesse para seguir a via dos esmagamentos militares, das conquistas territoriais ou da humilhação de outras civilizações, esse seria – neste início do século XXI – procedimento criticável e vocacionado ao fracasso. O humanismo cristão que hoje nos rege não o permitiria, o cenário internacional desmoronar-se-ia sobre nós, a restante tenacidade nacional seria incapaz de tal senda até porque vem sendo moldada com vista a mais brandos desígnios.

Tendo numa escassa quarentena passado de cabeça de Império a membro menor duma união de Estados cada vez menos soberanos e onde a solidariedade corresponde tão-somente a chavão discursivo, cumpre-nos agora reformular o modelo de desenvolvimento que já revelou plena caducidade para, tão rapidamente quanto possível, pagarmos as dívidas que a desgovernança deixou acumular.

E se esta missão é inultrapassável, ela não obsta, contudo, a que procuremos ganhar no exterior a dimensão que nos falta «cá dentro». Em paralelo e com igual urgência.

Imunes à amoralidade resultante do pós-modernismo instalado na vida pública nacional e ao resultante derrotismo da maioria da sociedade portuguesa, há por esse mundo além inúmeras comunidades que se sentem e intitulam lusíadas, que nutrem por Portugal sentimentos de grande afeição e de longínqua nostalgia, que ambicionam pela retoma de laços de que nalguns casos se viram privadas durante séculos.

Quando as novas tecnologias da comunicação nos permitem estabelecer esses contactos, sem sequer nos sujeitarmos às intempéries, não haveria desculpas para que o não fizéssemos. E se o fazemos numa perspectiva de remissão de erros cometidos ao longo da História, confessamos a ideia que nos move de contribuirmos para a criação de um novo mundo lusíada baseado nos princípios do humanismo cristão de inspiração lusíada, numa base de equidade, mesmo naqueles casos em que os povos não tenham podido passar por qualquer processo de autodeterminação.

E se não temos a pretensão de reescrever a História, deixem-nos pelo menos sonhar com a ideia de que a língua portuguesa se possa afirmar como um verdadeiro instrumento da paz ao longo deste potencialmente desvairado século XXI.

ÍNDIA

No processo de retoma de contactos com os «portugueses abandonados», saltou a Índia para o primeiro lugar das nossas preocupações e é com grande satisfação que colaboramos em tudo que nos pedem os lusófonos de Goa que, reunidos na Sociedade de Amizade Indo-Portuguesa e com o apoio da Fundação Cidade de Lisboa, já organizaram 14 cursos de português para adultos com uma frequência média de 96 alunos por curso. Distribuídos por três níveis e por duas cidades (Pangim e Margão), a aprendizagem formal conclui-se com um curso de conversação trimestral. Aqui, sim, temos colaborado entusiasticamente na procura em Portugal de professores interessados no desempenho desta função. Também este complemento suplantou as melhores expectativas pois que logo na primeira edição em vez de uma turma de 15 alunos, o professor teve que se desdobrar de modo a ensinar uma turma em Pangim e outra em Margão. O quarto curso teve 4 turmas de 15 alunos e para o que se iniciará em Janeiro de 2012, o quinto, admite-se a necessidade de deslocar mais professores de Portugal. 

É comovente entrar na sede da Sociedade de Amizade Indo-Portuguesa em Pangim e ouvir falar português como se estivéssemos em Lisboa.

O ensino de português às crianças goesas está a ser feito por professores goeses que completaram o curso ministrado localmente pelo Instituto Camões e que vêm sendo colocados pelo Governo goês na rede de escolas públicas do Estado.

A percentagem de lusófonos em Damão, Dadrá e Nagar-Aveli estima-se que ainda hoje ronde os 30% da população apesar da longa solução de continuidade que houve no ensino da nossa língua e apesar de a Igreja ter passado há uma dezena de anos a utilizar o inglês em todos os actos litúrgicos.

Sempre pela Internet, foi relativamente fácil identificar um damanense interessado em restabelecer laços culturais com Portugal e encontrar uma professora habilitada com o curso da Delegação do Instituto Camões em Macau. Tal a apetência, foi num ápice que um grupo de crianças residentes em Damão Grande passou a frequentar as aulas. O segundo curso iniciar-se-á em Outubro de 2011, passada a monção. Falta agora relançar o ensino do português no Instituto Nossa Senhora de Fátima, o que ainda não foi possível.

Mas também ainda não conseguimos tantas outras coisas…

Os católicos de Baçaim – a antiga Corte do Norte do Estado Português da Índia e hoje arredor de Mumbai (Bombaim) – terão ouvido falar da nossa acção e contactaram-nos pela Internet a fim de trocarmos impressões sobre a história do forte português daquela cidade. A propósito da interpretação das inscrições nas muitas campas existentes na igreja local, foi com a maior naturalidade que surgiu a ideia de lançar o ensino do português. Um dos objectivos entretanto definidos pelos elementos do grupo entretanto constituído no Facebook, consiste em futuramente a Missa passar a ser celebrada em português até porque pretendem que todo o processo de relançamento da Cultura Indo-Portuguesa em Baçaim se desenvolva em estreita colaboração com a respectiva Diocese.

Inesperadamente e com a maior surpresa dos locais, localizámos uma portuguesa residente naquela cidade com a formação necessária ao ensino do português. As aulas começarão brevemente, logo que a Diocese disponibilize uma sala para as aulas e logo que a monção deixe de convidar as pessoas a manterem-se em casa.

Está em constituição um núcleo de goeses residentes em Bombaim que pretende integrar este movimento de retoma da Cultura Indo-Portuguesa. Aínda estamos nos contactos preliminares com vista à confirmação da liderança local bem como à definição dos objectivos que o grupo possa vir a definir.

Inesperadamente, fomos contactados por um católico de Cochim que, no âmbito duma Associação local ligada à Igreja, mostra muito interesse pela culinária indo-portuguesa. Não sendo tema que dominemos de modo diverso do de consumidores, nada obstará a que lhe dediquemos o tempo necessário ao desenvolvimento de relações à distância que permitam retomar a tradição e confirmar que a língua portuguesa ali possa ser um instrumento da erudição e do bom entendimento entre duas Culturas que pretendem voltar a conviver em paz e a comer (comungar) com gosto à portuguesa.

Em Chaul-Korlai o processo está mais atrasado pois dizem-nos que morreu o último falante de português e o crioulo local de origem portuguesa está em vias de extinção por pressão das línguas vernáculas do Estado de Maharastra. Resta agora saber se os luso-descendentes daquelas localidades pretendem recuperar o seu crioulo ou se pretendem aprender o português moderno. Na primeira hipótese, terão que contar consigo próprios; quanto à segunda, poderemos procurar uma solução.

De qualquer modo, ao tempo em que escrevemos estas linhas, o processo ainda não foi interiorizado naquela população e os contactos que vimos recebendo têm origem noutros grupos católicos indianos.

MAIS QUÊ?

A Internet é uma verdadeira caixa de Pandora pelo que a qualquer momento nos podem surgir novas solicitações de comunidades nossas desconhecidas. Ou seja, a qualquer momento poderemos ser induzidos a mudar as prioridades que vimos estabelecendo.

Mas há uma linha de rumo que consideramos perene: com o tanto que está por fazer, não avançaremos para locais onde já esteja alguém a fazer o mesmo que nós nos propomos desenvolver.

É o caso dos «portugueses abandonados» de Malaca onde se encontra a Associação Coração em Malaca e em Batticaloa (Sri Lanka) para onde a AMI – Assistência Médica Internacional terá enviado um professor há relativamente pouco tempo.

É também o caso de todas aquelas comunidades de emigrantes portugueses na Europa e na América do norte onde o ensino da nossa língua está assegurado por Associações locais.

As nossas prioridades continuam a definir-se pelo grau de abandono em que encontramos quem se diz luso-descendente e quer retomar os laços culturais com Portugal ou, no desconhecimento da sua própria História, se sente cultural ou religiosamente diferente de quem os rodeia sentindo necessidade de algo para que consiga preservar os padrões que herdou e quer legar aos seus próprios descendentes.

Estão neste caso os católicos dos arquipélagos das Celebes e das Molucas (Indonésia) e os Melungos dos Apalaches (costa leste da América do norte).

A todos tentaremos chegar com uma palavra de amizade e de paz, por vezes com uma visita para nosso conhecimento da realidade local, concretização da missão que esperamos das pessoas envolvidas e estreitamento dos laços de fraternidade que no nosso entendimento privado deverão definir o futuro de Portugal.

Um motivo a mais: a apetência social e cultural do espaço Schengen…

Mas fora destes padrões ficam outros a que alguém há-de um dia «deitar a mão». Referimo-nos aos descendentes de Pêro da Covilhã e dos outros 400 portugueses que há séculos perambularam por terras do Preste João. A Igreja oficial etíope poderá hoje continuar monofisista mas não terá certamente sido em vão que por lá passou a Companhia de Jesus. Lá iremos…

Fica na horizonte o tanto que sonhamos mas nem sequer imaginamos.

O romance da geração de 70

Novembro 15, 2011

                                                                                                                                                             Por Adelto Gonçalves (*)

I

Depois de publicar, em 2005, O Viúvo (Brasília: LGE Editora), definido por este articulista como um das poucas obras-primas do romance brasileiro do começo do século XXI, Ronaldo Costa Fernandes (1952) volta a incursionar no gênero, desta vez com Um homem é muito pouco (São Paulo: Nankin Editorial, 2010), que pode ser considerado o romance de uma geração, a geração que começa agora a chegar a seis décadas de existência e viveu convulsivamente o pesadelo das décadas de 1960 e1970, a longa noite do terror direitista (1964-1985) que infelicitou a Nação. E que como legado favoreceu o fortalecimento de um conluio de antigos esquerdistas arrependidos com arrivistas e oportunistas de todos os matizes que, hoje, saqueiam a não mais poder os cofres da República.

Dividido em quatro partes aparentemente desconexas e independentes, este romance, se tem um fio-condutor, este é um anti-herói nada simpático – um homem da antiga comunidade de informações, o capitão Vaz, ligado aos órgãos repressivos do regime militar (1964-1985), uma figura semelhante a Alfredo Astiz, o famoso Anjo da Morte, um dos símbolos macabros da ditadura argentina, que por estes dias acaba de ser julgado e condenado à prisão perpétua. 

A diferença é que os anjos da morte brasileiros que ainda restam por aí são fantasmas que se esgueiram pelos salões da sociedade, com a certeza de que nunca serão punidos por seus crimes. Até porque um dos economistas mais poderosos daquele tempo é, hoje, um venerando consultor de grandes empresas e do próprio governo, ainda que, àquela época, até a própria presidente de hoje fosse uma das integrantes do bando que o queria seqüestrar e, provavelmente, eliminar. São as voltas que a vida dá.

II

Como é um romance de uma geração, Um homem é muito pouco traz à lembrança um livro daquele tempo que também marcou época, aos menos para aqueles jovens intelectuais de então, O afogado (Rio de Janeiro, Editora José Álvaro, 1971), de Abel Silva (1943), lançado no auge da repressão política. Formado em Letras, ex-líder estudantil, ex-morador do Solar da Fossa, residência coletiva localizada no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, que reuniu em determinada época os compositores e cantores Caetano Veloso, Gal Costa, Rui Castro, Torquato Neto e outros nomes conhecidos, Abel Silva enveredou pelo conto e fixou-se como poeta-letrista de compositores e intérpretes como Raimundo Fagner, Capinam, Luiz Gonzaga e outros.

Como O Afogado, romance hoje esquecido, que, ao que se sabe, nunca teve reedição, a obra de Costa Fernandes é também o retrato daquela mesma geração desesperada, que não sabia muito para onde ir, mas que sabia muito bem que não pretendia seguir por aquele caminho que a horda de fascistas que haviam empolgado o poder queria levar o País. Era uma época de muitas ilusões em que se acreditava que a espécie humana podia ser reformada de cima para baixo, talvez por influência dos soviéticos. Hoje, quem anda pelas cidades da Rússia constata que o legado que deixaram são grandes edifícios de linhas retas em meio a largas áreas verdes na periferia em que viveriam os operários e que, hoje, não passam de pardieiros mal ajambrados. É o que se vê nos arredores da velha Moscou. Foi por esse “paraíso” que essa geração lutou. Se não chegou até lá, também não se perdeu grande coisa.        

III 

De título enigmático, Um homem é muito pouco, de Ronaldo Costa Fernandes, se não pode se equiparar a O viúvo – afinal, nenhum autor é capaz de escrever só obras-primas –, é um romance que exige fôlego do leitor – e não só em razão de suas 488 páginas. E que por isso mesmo não deve atrair o leitor médio de hoje, que só se interessa por livros de auto-ajuda que contam a história de executivos bem-sucedidos chegados a episódios esotéricos e temas afins.

Até porque, como diz o crítico Ramiro Teixeira, em artigo publicado no quinzenário As Artes Entre as Letras (Porto, 26/10/2011, pp. 6 e 7), hoje, a Literatura é apenas um negócio e, sendo assim, possui um marketing indiferente ao valor do produto, mas extremamente sensível à mais-valia que retira do acessório ou do perfil social do autor.

Segundo essa visão mercantilista, escritor bom é aquele que se expõe ao ridículo das noites de autógrafos, imita os bobalhões estrangeiros autores de best-sellers, faz da História um espetáculo circense e dá declarações estapafúrdias às vésperas do lançamento em busca de visibilidade na mídia, tal como fazia o José Saramago dos últimos anos, já beirando a senilidade, que, como observa Ramiro Teixeira, tratava de preparar efeitos polêmicos, a partir da falta de respeito com as regras da pontuação. Imaginava-se talvez um Deus ex-machina que pudesse dar sentido à História.

Como afirma Valentim Facioli na apresentação que escreveu para este livro, Um homem é muito pouco é constituído por narrativas que “experimentam variações do ponto de vista, em terceira ou em primeira pessoa e a identificação dos narradores é sempre um exercício de descoberta para o leitor”. Mas, uma vez identificado o narrador, o que exige um pouco de atenção do leitor, o caminho fica aberto para a compreensão da narrativa.

De caráter existencialista, esta obra procura resgatar o mundo subterrâneo dos tempos sombrios da ditadura militar, mas não por meio de personagens desajeitadamente heróicos que arriscaram a própria vida para desafiar o poder armado daqueles anos, militando em (des)organizações esquerdistas, como o fizeram alguns militantes que, mais tarde, tornaram-se escritores de ocasião e hoje são políticos profissionais bem postos na vida.

Os personagens de Costa Fernandes são pessoas comuns que vivem no Rio de Janeiro daqueles“anos de chumbo”, sem maiores aspirações, exceto sobreviver. Gente que se odeia ou se ama com a mesma intensidade, alguns com boas intenções e bons sentimentos e outros decididamente cruéis e insensíveis. A partir desses personagens, o autor tira algumas reflexões que surpreendem o leitor e o faz pensar, como quando, a propósito de um personagem embarcadiço por profissão, diz que “o pior clandestino é o sujeito que anda pela vida como se não pertencesse a nenhuma embarcação”. Ou, então, quando observa que “o sujeito pode trabalhar todo o dia como pedreiro ou carpinteiro, mas a alma continua vadia”.  Só por frases assim pode-se dizer que este romance não é “muito pouco”. Pelo contrário.

IV

Ronaldo Costa Fernandes publicou, entre outros romances, O viúvo (2005) e O morto solidário (1998). Ganhou vários prêmios, entre eles, o Casa de las Américas, Revelação de Autor da APCA e o Guimarães Rosa. Além de ficção, publicou poesia e ensaios, sendo um dos últimos Considerações sobre um poeta: Lêdo Ivo”, publicado na Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, nº 56, ano XIV, fase VII, jul.-set. 2008. Dirigiu por nove anos o Centro de Estudos Brasileiros no Venezuela e, de volta ao Brasil, a Coordenação da Fundação Nacional de Artes (Funarte), do Ministério da Cultura, em Brasília.

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UM HOMEM É MUITO POUCO, de Ronaldo Costa Fernandes. São Paulo: Nankin Editorial, 2010, 488 págs, R$ 50,00.  E-mail: nankin@nankin.com.br Site: www.nankin.com.br 

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesapela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br