Por Rita Alves
(título inspirado em Sandra Martinelli, pintora, artista, cantora e cuspidora de fogo)
Tenho feito textos críticos, históricos, algumas crônicas, contos, letras de música e poemas, obviamente.
Também tenho “brincado” seriamente com as artes plásticas, recentemente dei voz ao Cristo de Dacio Bicudo, num discurso em primeira pessoa. (O Cristo: obra de arte de Dacio, em exposição na Galeria Lourdina Jean Rabieh)
No entanto, é no uso diário da escrita que tenho percebido o modo voluptuoso das expressões racionais ou emocionais. As redes sociais são ótimas fontes de pesquisa e observação, análise das formas de lidar com a língua, as citações cada vez mais constantes de frases de pensadores, poetas, filósofos e até frases de música, como modo de se apropriar do falar do “outro”, para dizer o que precisa.
Avalanche de frases chavões, outras mais raras. Algumas se popularizam surpreendentemente, vejam que Nietzsche está no topo da lista das frases mais “curtidas”, “compartilhadas”, e, em alguns casos, vão acompanhadas de imagens selecionadas cuidadosamente e que chegam a impressionar pela diversidade, pelo garimpo que faz surgir todo um contexto que relaciona frases desconexas a pessoas que nunca leram filosofia, ou ainda imagens de obras de arte, desde os clássicos à vanguarda, aliados a biografias, novos termos, enfim… Festa da linguagem, mesa farta para recortes e estudos.
Muito comum vermos personalidades da TV, do alto jornalismo, poetas respeitados, pintores de vasto currículo trocando ideias com iniciantes no mundo do pensar. E tenho acompanhado diálogos (multi-transversais) interessantíssimos.
Recentemente fui “corrigida” pelo amigo poeta Fernando Vasconcellos, do Recife, quando nomeei a criação dele de neoconcretista, colocando-o à frente do tempo dos concretistas… e eu já achando ultra vanguardista, mas ele logo abaixo do meu comentário escreveu:
“pós-neoconcretista, amiga Rita Alves.”
Ninguém deixa barato… É preciso fundamentar, como sempre solicita outro “amigo virtual”, Mo Toledo, que adverte em um de seus “posts”:
“há todas as perspectivas no horizonte de uma sentença;”
Sim, ele inicia a frase com letra minúscula e termina com ponto e vírgula. Como se o pensamento já viesse antes do que escreveu e que continuem se quiserem, pois o tema não está encerrado…
E isso tudo é material precioso para meus olhos de poeta.
Percebo as farpas trocadas entre casais e amigos que se estranham. Indiretas tão diretamente lançadas e muitas vezes prontamente respondidas, que fica impossível de imaginar que, há algum tempo, achávamos o e-mail algo rápido e altamente funcional.
Agora é o tête-à-tête. Falou (escreveu), tem a resposta na hora, publicamente.
Passo muitas horas em frente ao écran (para agradar aos amigos de Portugal), pois é minha ferramenta de trabalho, vivo da escrita… Por isso, um dos ícones na tela é sim a rede social, sempre levantando a bandeirinha de nova mensagem ou nova postagem, levantando também a bandeira da nova comunicação: rápida, ligeira, aparentemente efêmera, mas me dou a indulgência, especialmente depois que ouvi o Jorge Forbes dizendo que passamos da época das grandes manifestações e revoluções, pois agora é o momento das pequenas milhares, milhões de revoluções simultâneas, geradoras de grandes transformações.
Espero promover a minha revolução: a da palavra poética, em novos suportes.
E O CRISTO FALOU…
“Ainda algumas palavras.
Recorro à chance que me deu Dacio Bicudo, após 2012 anos em que estive prostrado nesta cruz, sem dizer palavra, de me expressar numa exposição de arte.
Em primeiro lugar agradeço à tecnologia. À invenção do microfone, pelo amigo Graham, que depois deu um salto à frente inventando a telefonia… E é através dela que vocês receberão meu discurso, pela internet.
Em segundo lugar faço aqui um protesto contra o poeta Fernando Pessoa. Ele sedimentou a crença no Mito. E ainda por cima me tirou a chance de me defender, afirmando que “O mito é o NADA que é tudo”; ora, sendo ‘nada’, jamais poderia reagir.
Faço um apelo aos homens de bem e aos que não são de bem, para que prestem mais atenção aos julgamentos e às condenações. Há neste processo uma necessidade extrema, política e tanto mais psicanalítica de punir o outro como forma de redimir-se a si mesmo.
Afirmam há dois mil anos que morri na cruz para salvar a vocês todos. Ora! Não acredito em redenção terceirizada! Cada qual é responsável pelas próprias atitudes e deve arcar com as possíveis consequências. O problema é que há uma institucionalização da culpa, há uma burocratização dos pecados, há uma ‘sentencialização’ (peço licença ao Guimarães Rosa pelo neologismo) dos processos de evolução do pensamento absolutamente atrasada em relação ao tempo presente, presente este que, aliás, para mim, tem durado uma larga fatia de tempo.
Ainda preciso fazer uma reclamação sobre a atuação de marketing de Paulo. A campanha parece ter sido um sucesso, mas também gerou tanta controvérsia, serviu de álibi para tantas guerras, que ainda não fechei minha opinião se foi uma campanha vitoriosa. Além do mais, há muita gente ganhando em cima do meu inencontrável cadáver. Abre-se uma igreja a cada segundo neste mundo, estes homens se elegem, têm ocupado cargos públicos diametralmente opostos aos meus ideais, mas dizem-se calcados em palavras que falei, mal interpretadas.
Ainda preciso dizer que amei. E que tive sim uma adolescência, mesmo que renegada e arrancada das páginas de minha história. Fui, como tantos, curioso, impetuoso, hormonal e historicamente contraditório e cheio de dúvidas sobre os meus ideais, como todo adolescente. Por isso fugi um tempo de casa. E retornei para me redimir das minhas próprias dúvidas.
No entanto, observo, hoje, que virei peça de museu. Ou melhor, de galeria. E que diabos está acontecendo com as artes?! Mercadorias desconstruindo todo o processo de criação e pensamento. O capitalismo invadiu também a criação? Quase saltei da cruz e invadi a fatídica Bienal do Vazio, em 2008. Mas desisti. Depois assisti pela TV urubus presos lá dentro, grafiteiros tentando ocupar algum espaço de expressão.
Vejo que este sacrifício foi infecundo e estéril: Prostituição das artes e prostituição infantil; arquitetura labiríntica do tráfico de drogas x consumidores de classe média alta e alta; governos financiando guerras para manter a lucrativa indústria das armas e da (re)construção civil; hipocrisia no trato de preconceitos com a instituição de leis antirracismo, contra a homofobia, sendo que isso deveria vir das mais profundas estruturas do ser, da bondade e compreensão da suprema igualdade entre os seres, do amor pleno, pois a lei deve ser reflexo de uma sociedade e não o inverso.
Pensei em pedir que me tirassem daqui, que me dessem o digno direito do descanso. Não solicitei nenhum privilégio de ocupar vagas para idosos, nem pagar meia na vida, nem pular a vez na fila, pois nunca me permitiram sair dos meus 33 fatídicos anos, centenas de vezes multiplicados nesta peleja.
Que eu seja, ao menos, fonte de inspiração para artistas e poetas, diariamente crucificados pela burocracia das leis de incentivo a projetos culturais ou desdenhados por editoras.
E assim encerro meu discurso, estou cansado, com um torcicolo apavorante… É, vou me inclinar agora para a esquerda.”