Por Fernanda Leitão
Recentemente, vários jornais deram grande espaço às premonições de Natália Correia, designadamente aquelas que anteviam a instalação no nosso país dum governo neo-liberal, o esmagamento da classe média e o caír da máscara da União Europeia.
A primeira vez que vi Natália Correia foi nos idos de 1959/60, pela mão de Vasco Lima Couto, poeta e actor que morreu novo. Foi num sarau literário num antigo clube perto do Rossio. Eu era então estudante universitária e os meus olhos deliciaram-se a conhecer outro poetas, outros escritores, que, viciada em leitura desde muito cedo, eu tinha lido. Não fui apresentada a ninguém, não tinha estatuto para isso, mas ainda assim fui brindada com uma briga homérica entre Lima Couto e Natália Correia que, incomodada com a irreverência do jovem do Porto, desfaleceu nos braços de Pedro Homem de Melo. Fiquei pregada ao chão.
No rodar dos anos, sempre anónima, vi várias vezes Natália Correia pegar-se com José Carlos Ary dos Santos, e achei graça à exuberante galhardia da poeta que não se ficava nem virava a cara. Nunca falei com ela. Isso só veio a acontecer no meio do verão de 1975, o inesquecível verão do PREC, com o PCP a dar-nos a provar o que seria um regime dominado por ele, o PS encarreirado atrás de Salgado Zenha e Mário Soares a lutar abertamente contra a possibilidade de uma nova ditadura, o PSD desnorteado nas mãos de Guerreiro e Seabra enquanto em Londres Sá Carneiro lutava contra a morte, o CDS acossado e insultado como se fosse veneno mas digno sob a tutela de Freitas do Amaral e Amaro da Costa. Por via das dúvidas, comprei o jornal Templário e, desde Tomar, parti quanta loiça pude, sempre na mesma linha: não à ditadura, fosse ela de que cor fosse, não havendo ali espaço para comunistas ou fascistas. Tive uma grande ajuda nessa arrancada: um dos jornalistas saneados do Diário de Notícias, o Carlos Pina, que passou a viver no meu apartamento de Lisboa visto que eu me tinha mudado para Tomar. À quinta-feira pela tardinha fechava o jornal, apanhava o comboio e ia a Lisboa saber novidades.
Foi assim que, com Carlos Pina, aterrei no Botequim e me juntei ao Carlos Pinto Coelho, Ana Maria Adão e Silva, Lena Cantos, Maria de Jesus Facco Vianna e o pintor Lino António. Era divertido e uma boa fonte de noticias. Uma noite alguém me chamou em voz alta e Natália Correia levantou-se dizendo na sua bela voz: “onde está essa mulher? Quero conhecê-la”. Depois dessa noite tivemos algumas conversas, no Botequim e na casa de Ana Maria, no Castelo do Bode, e não em Castelo de Vide como há quem alvitre. Tínhamos a mesma preocupação de liberdade, o mesmo amor de Pátria, as mesmas inquietações quanto ao futuro.
Natália era excessiva e tronitruante, por vezes exagerava e chocava, mas era uma pessoa generosa e leal. Dali a pouco, nos cafés de Lisboa, dizia-se , em boa piada machista, que Portugal tinha quatro homens de saias: Natália Correia, Vera Lagoa, Fernanda Leitão e o Bispo do Porto (D. António Ferreira Gomes). Natália Correia interessava-se pelo meu trabalho e animava-me a seguir em frente. Dordio Gomes, seu futuro marido, e José Martins Garcia, escritor açoreano vindo do exílio, eram colaboradores certos. A poeta vibrou quando, fechado o jornal República pelos “democratas” da escola soviética, e abarbatados pelas suas hostes ou somente pelo medo outros jornais, não havia onde se publicasse a entrevista que a famosa jornalista italiana Oriana Fallaci fez a Cunhal. José Martins Garcia e Álvaro Guerra procuraram-me para o efeito. Publiquei. Foi uma festa, a edição esgotou e fizeram-se fotocópias a granel. O caso não era para menos: a uma pergunta da jornalista, Cunhal declarou que Portugal nunca teria uma democracia burguesa, leia-se ocidental, e que, se tivesse de escolher, antes queria o Pinochet do que tal sorte.
No meio de tudo isto, chega-me às mãos um livrinho graficamente modesto, distribuido clandestinamente, de um senhor que muito estimei e respeitei: o Prof. Fernando Pachedo de Amorim. Coração de flor e carácter de bronze. Exilado em Espanha, passando as maiores dificuldades por não pertencer ao grupo que por lá andava a sonhar com regressos ao passado, Pacheco de Amorim fez o livrinho para alertar consciências com as suas premonições. Explicou o que era a Reserva Federal Americana, o Clube de Bilderberg, a maçonaria doméstica, e vaticinou o crash americano, a crise financeira europeia, o trambolhão do clube europeu que já andava em gestação, a miséria dos poos europeus e “uma grande nuvem negra sobre toda a Europa”.
Não surpreende que pessoas de meios tão diferentes chegassem por dedução às mesmas conclusões. Acho até natural.
No final daquele ano malfadado, Sá Carneiro regressou a Portugal e convidou Natália Correia, Vera Lagoa e eu para almoçarmos com ele. Queria conhecer-nos. Sá Carneiro era uma águia inocente e aquele almoço foi muito revelador.