Por Saulo Krichanã Rodrigues
Muitas explicações por certo ainda serão destiladas para tentar decifrar o enigma das manifestações de junho: o inverno trouxe mais calor do que poderia sonhar a vã filosofia dos políticos, a sapiência dos marqueteiros, a profundidade rasa dos filósofos da mídia policialesca, de repente autotransformados em tradutores da alma popular.
Após uma semana de estupefação, ainda sem entender o que havia ocorrido, por via das dúvidas, todos vestiram as carapuças que lhes pareceram mais adequadas.
A presidente (a) – a quem se acusa de pouco ouvir (sic) os que lhe estão mais perto – resolveu ouvir (sic) sem intermediários os que estavam mais longe: se descobriu autista para entender o que lhe tentavam dizer.
E ainda ouviu (sic) o que não queria: que estava despreparada para entender o que os seus jovens e quase imberbes interlocutores lhe diziam sob o olhar igualmente vazio do Ministro das Cidades, para quem a questão da mobilidade urbana relatada parecia tão clara como uma declinação em sânscrito!
Não ouviu (sic) de seu Vice Presidente (um constitucionalista respeitado) o que acabou por ouvir do presidente do STJ (afinal ele mesmo pré eleito pela voz das ruas como o candidato independente de partidos). A quem também parece não ter dado ouvidos…
Pediu ao seu Ministro da Justiça que ouvisse (sic) o eterno presidente da oposição, que havia proposto em 1999 uma Constituinte Exclusiva para fazer a Reforma Política que o Congresso Nacional ceva há quase duas décadas, sobre o que achava da sua (dela) ideia de requentar o mote. E exilar o Congresso da ligação direta que ela queria fazer com as ruas….
E, ambos, presidente (a) e ministro, ao que parece sem ouvir (sic) o tutor de ambos: de quem, aliás, pouco se tem ouvido falar…
A ambos, o eterno presidente ao ver sua ideia passada ser revivida sem os respectivos créditos não se lembrou de aduzir a ambos, o que só viria a dizer mais tarde, quando se tornou pública a consulta que lhe haviam feito às escondidas. E para que afinal todos ouvissem (sic) e soubessem (tal como a reeleição?): “mas eu errei!!!”
Do outro lado da Esplanada, o Congresso se reunia até em dia de jogo de semifinal da Copa das Confederações, para passar todos os recibos que lhe haviam sido enviados: como ninguém é de ferro, acabou pegando carona nas asas da FAB como que para lembrar aos céticos e até então surpresos eleitores e analistas que suas vozes haviam mudado: “mas os seus cabelos (acaju) continuavam os mesmos”… como na velha propaganda do século passado.
Até os igualmente eternos presidentes de sindicatos e centrais sindicais – um exemplo de perpetuidade no poder que só encontra paradigma em algumas ancestrais tribos e nações africanas – ouviram (sic) de outra forma o que lhes diziam as ruas.
E decidiram replicar nas férias de julho, sem sorteio de mimos aos seus afiliados compulsórios, um dia de luta que a julgar pelos índices de mobilização e simpatia popular decididamente deve entrar no rol das sugestões que nunca deveriam ter sido aventadas.
Nesta Babel Auditiva singular, quem se esforçava tanto para ouvir (sic) não conseguiu escutar o que tanta gente afinal quis lembrar aos poucos que os governam.
No próprio Congresso, tramitava desde pouco antes das passeatas invernais de junho, a PEC 90, ainda não apreciada pelo Plenário, que propõe acrescentar ao capítulo dos Direitos Sociais da Constituição Federal o transporte urbano como um direito inalienável do cidadão.
Nesta categoria, ao lado da educação, da saúde, da segurança e de outros direitos, o transporte urbano passaria também a representar uma categoria de despesa da sociedade cuja cobertura deve se dar sempre por recursos de origem predominante fiscal.
Passam a ser de cobertura obrigatória dos entes federados (estados e municípios), de forma direta (via transferências de renda, ou via impostos e tributação) e – como sustenta o Movimento pelo Passe Livre e induz a própria PEC 90 –, não mais de forma indireta (via a cobrança de tarifas e a terceirização de serviços).
Comparando com a saúde pública – um dever do Estado e um direito do cidadão, conforme reza ao artigo 196 da Constituição – do cidadão atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) não se pode cobrar qualquer tarifa ou ressarcimento pelo atendimento. Ainda que não se dê ou se garanta ou assegure a ele (o cidadão) a qualidade de saúde que merecesse afinal ser digna de qualquer remuneração direta…
A própria Carta prevê a possibilidade de que o setor privado supra as lacunas do setor público permitindo a existência da assistência privada de saúde, esta sim paga e remunerada pela oferta e qualidade dos serviços que oferece ao cidadão.
Mas, que na letra da lei, não deixa de se constituir em uma bitributação: afinal, os impostos diminuem a renda disponível na expectativa do que o que se transfere ao fisco volte na forma de benefícios. Se os benefícios não vêm, no médio ou no longo prazo, gastar para ter do privado o que deveria ser suprido pelo público, reduz duas vezes a renda disponível no montante dessa onerações.
Afinal, em tese, o que os governos arrecadam deveria ser alocado naquilo que o Estado, através da sua Constituição, se compromete a prover aos seus cidadãos: afinal, a Constituição é o primeiro e o maior “contrato” que um Estado tem para seus concidadãos.
Se não é possível garantir o cumprimento do que está escrito na Carta Maior para seus próprios concidadãos, como garantir a terceiros, do país ou do exterior, o cumprimento de outros contratos e obrigações de natureza não constitucional?
Ao serem convidados a defender no Congresso suas posições, em sessão da Comissão Geral criada para estudar a tramitação da já citada PEC 90, aos congressistas que se dispuseram a ouvi-los (sic), os integrantes do movimento que havia acendido o rastilho das manifestações de junho, deixaram bem claras as suas posições.
Ou seja, a mobilidade – no entender deles e ao amparo da PEC 90 –, é direito do cidadão e dever do Estado: deveria ter o status dos demais gastos primários como o do atendimento da saúde; ou do acesso e da promoção via a educação fundamental.
Ou seja, de fato a questão de fundo não se resume a tirar mais 20 centavos ou 15 centavos das tarifas públicas cobradas pelos entes federados em seus modais de transporte: mas tirar todos os demais centavos das tarifas de transporte públicos de massa.
Não cabe desonerar tributos sobre a receita dos concessionários porque não se cobrarão tarifas dos usuários dos serviços modais de massa. Não cabe também desonerar impostos incidentes sobre a produção de ônibus ou sobre o combustível a ser utilizado na movimentação dos meios de transporte ou na energia a ser usada pelos modais que usam a tração elétrica para a sua movimentação.
A matriz de arrecadação deve ser repensada para – uma vez julgada justa e aceita a proposta das ruas – embutir a proposta do “passe livre”.
Imediatamente ou através de uma sistemática de conversão negociada; e a partir de um determinado horizonte de tempo para que as demandas por este novo direito social proposto pela PEC 90 sejam consistidas com as demais demandas, hoje atendidas pelas politicas públicas de transporte publico e privado existentes no país.
Se é que elas existem: e se é que elas existem que sejam coerentes entre si.
Por exemplo, como consistir essa demanda com a desoneração de impostos para a compra de veículos próprios? Ou com a desoneração implícita do preço da gasolina e do diesel bancadas à custa da descapitalização da Petrobras, vis a vis aos preços do petróleo existentes no cenário internacional?
O que o choque termal das passeatas de junho colocou para a opinião pública e a população do país foi que o modelo de desenvolvimento do país chegou ao limite de suas contradições.
E pela ordem no que tange ao transporte urbano (sem considerar os demais direitos sociais previstos na Constituição):
Primeiro, que não é mais possível subordinar a noção de “governos” ao conceito maior de “Estado”: a vingar a tese do “passe livre”, o Estado deve prover o transporte público até o limite de sua gratuidade; e não o transporte privado individual e desonerado que entope as ruas e torna o “ir e vir” um exercício de paciência chinesa associado ao conforto fetal de uma lata de sardinha portuguesa.
Segundo, se vai ser bancado pelo Estado, é preciso que os diferentes “governos” que se sucedem a cada 4 anos passem a cumprir uma espécie de Plano de Conversão do Modal de Transportes. Onde couber – por exemplo – que haja um compromisso de construir X quilômetros de Metrô; Y quilômetros de Trens Urbanos; Z quilômetros de corredores de transportes a cada 4 anos – governo após governo – até que as necessidades básicas modais de transportes demandadas pela população sejam supridas.
Terceiro, seria rever o conceito das concessões do transporte público.
O transporte público dá prejuízo ao concessionário? Seria possível operar a tarifas mais baixas? O Estado deve assumir a operação do transporte de massa? Como fez na década de 20 do século passado?
Mas sem promover o mesmo “choque tarifário positivo” que então necessitava para purgar o congelamento tarifário imposto aos concessionários privados estrangeiros que então operavam os bondes: o que, aliás, redundou em mais de 1/3 da frota então pública avariada pelos usuários acostumados com o preço quase nulo das tarifas.
Em São Paulo, ao preço médio líquido entre R$ 2,20 a R$ 2,30 por passageiro transportado – quase 7,8 milhões de passageiros ao dia ou quase 200 milhões de viagem ao mês –, a receita total é da ordem de R$ 5,3 bilhões ao ano que somado ao subsídio declarado pelo governo local significa algo como R$ 6,4 bilhões ao ano (pouco menos do que o orçamento da saúde na cidade).
Uma Concessão de 20 anos que previsse a troca total da frota no início do contrato e no 12º ano da concessão (e uma margem sobre a receita ao investidor de 8,5% ao ano) tem uma taxa de retorno do projeto de concessão da ordem de 11% real ao ano (líquida da inflação e sem considerar ganhos financeiros de alavancagem do financiamento do projeto via BNDES).
Ou seja, está longe de dar prejuízo: pelo contrário, deveria prever o pagamento de outorga por parte do concessionário privado para a exploração das linhas, o que poderia ser revertido ao usuário do transporte público de massa sob a forma de menores tarifas (para todos ou para grupos de usuários como os idosos, estudantes, pessoa com déficit de locomoção e outras gratuidades previstas pela política pública de transportes).
Hoje, no entanto, o “choque tarifário” demandado seria de outra natureza: para ter a tarifa zero, o governo teria de tirar recursos primeiro do seu custeio eis que certas obrigações como saúde, educação e o pagamento das dívidas da lei de responsabilidade fiscal, são irrecorríveis. Os demais investimentos tão pouco podem ser afetados em detrimento de uma nova despesa contingenciada.
Além de taxar (pedagiando) o fluxo de carros nas marginais e no centro expandido para diminuir o tempo dos deslocamentos e otimizar a frota de cerca de 17 mil veículos de transporte de massa entre ônibus e vans. E onerar o custo da manutenção da frota individual, aumentando a CIDE, por exemplo.
Ou seja, singularmente, o modelo que promoveu o rastilho de reivindicações requer uma nova escolha política de prioridades e, por consequência, de atores políticos comprometidos com o que foi proposto.
A desoneração de impostos sobre os automóveis e a realidade tarifária da gasolina defenestraria qual parcela dos congressistas atuais?
No âmbito local, a prevalência do transporte de massa ao lado de um novo modelo de concessão (ou não, com o Estado através dos governos operando o transporte público) afastaria do poder quantos políticos proporcionais e majoritários eleitos sob o patrocínio dos grupos de interesse desse mercado que gira diretamente quase tanto quanto o orçamento da saúde na capital paulistana?
Os que marcharam ao lado dos que pediam o “passe livre” sabem que terão que contribuir com outras onerações sobre suas despesas correntes caso o governo não decida cortar o custeio corrente da máquina pública para bancar de fato o que ouviu (sic) nas ruas?
A resposta a essas questões – afinal de cunho distributivista – darão a medida da continuidade ou não das questões do inverno astral, após as férias e com a chegada da primavera a partir de setembro: ou seja, a nossa verdadeira primavera ainda pode estar por vir!
Ou seja, é preciso não apenas ouvir (sic), mas é preciso querer escutar (!) que o que se pediu nas ruas é um diametralmente oposto a tudo o que está por aí: das finanças públicas à teia de interesses que sustenta toda a representatividade política.
Realinhar as contas públicas para atender aos reclamos das ruas definirá uma nova matriz de interesses e, portanto, de representatividade nas casas legislativas de todo o país.
E, por extensão, no sistema jurídico, executivo e institucional que o sustenta: simples assim.
Complexo assim: em seus mínimos centavos!
Quer dizer: nos seus mínimos detalhes!