Arquivo de Março 2013

Procissão da Sexta-Feira Santa

Março 27, 2013

Por Cyro de Mattos

Todos os santos na igreja eram cobertos com um pano roxo na Semana Santa, menos Jesus Cristo. Era proibido comer carne vermelha e beber leite. A refeição matinal era com café e pão. À noite a refeição era a mesma. Ainda bem que tinha um pouco de arroz e peixe no almoço. Achava sempre um jeito de chupar uma manga, um pedaço de melancia ou laranja para tapear a barriga e não sucumbir à fome. Fazia isso com cuidado, sem que minha mãe soubesse. Ela dizia que as pessoas deviam jejuar na Semana Santa, em sinal de amor e respeito à morte do Cristo. O jejum era só naquela semana, passava logo, ninguém ia morrer por isso.

O comércio cerrava as portas na quinta e sexta-feira. Ninguém trabalhava nesses dias. A mãe falou que um homem entendeu de tirar leite da vaca na Sexta-feira Santa para tomar no café da manhã. Quando ele começou a puxar as tetas da vaca, só saía sangue em vez de leite. Aquilo era um sinal do céu para que o homem respeitasse o dia em que Jesus Cristo, o bem-amado salvador da humanidade, foi crucificado sem piedade pelos homens.

Parecia que toda a cidade amanhecia vestida de roxo na Semana Santa, principalmente na Sexta-feira. Assistia ao filme sobre a vida, paixão e morte de Jesus Cristo na matinê da Quinta-Feira Santa do Cine Itabuna. As pessoas saíam cabisbaixas do cinema quando o filme acabava. Ninguém se conformava com o que fizeram com Jesus, que foi coroado com uma coroa de espinho, depois de ser cuspido e chicoteado. Para não se falar na cruz pesada que o pobre coitado carregara pelas ruas. Não satisfeitos com tanta judiação ainda pregaram o filho de Deus na cruz de maneira cruel. Em vez de água quando Ele pediu, deram vinagre e, por último, enfiaram uma lança no coração.  Era demais o sofrimento de Jesus, muita gente chorava.

E tudo por causa do Judas, que traiu Jesus por um saquinho de dinheiro em moedas. O Judas passava como um dos apóstolos de Jesus, mas se rendeu à tentação do dinheiro. Deu um beijo na face para entregar o filho de Deus aos soldados romanos. Todo mundo se vingava do Judas quando no filme ele aparecia enforcado, o corpo do traidor balançando numa corda amarrada ao galho da árvore seca. Nessa hora o cinema quase vinha abaixo com as vaias da platéia.

Tinha uma sensação na procissão da Sexta-feira Santa que tudo era pecado, dor e lamento pelo que fizeram a Jesus. A imagem de Nosso Senhor Morto era levada no andor pelas ruas principais da cidade sob os cantos que falavam de pesares  e perdão:

 Perdoai, Senhor, por piedade,

Perdoai, senhor, tanta maldade,

Antes morrer, antes morrer

Do que Vos ofender…

A tristeza estava nos ares por onde a procissão andava com Nosso Senhor Morto,  as pessoas sofrendo pelas pedras do caminho. Gente acompanhava a procissão descalça para pagar alguma promessa em razão da graça alcançada através da bondade do Cristo salvador. Dona Olívia, a mulher do dono do Hotel Itabuna, vestida num comprido vestido roxo,  que tocava  os pés, cabelos compridos caindo nas costas, fazia o papel de Maria Madalena. A matraca tocava, a procissão parava enquanto ela exibia o rosto do Cristo no sudário..

Numa voz doída, ela arrancava suspiros e lágrimas dos fiéis calados naquele trecho de rua em que a procissão parava.

Pai salvador,

Misericordioso,

Toca no meu peito

O sofrimento Teu.

Fadiga, sede, fome.

Cuspe, espinho, sangue,.

Chicotada, prego,

Madeira feita cruz,

Meu Pai, perdoai

Os pecados meus.

Naquele ano em que caiu uma chuva rala durante a procissão, usava as botinas novas que minha mãe presenteou-me no aniversário. A procissão voltava pela avenida do comércio depois de percorrer algumas ruas. A imagem de Nosso Senhor Morto já ia entrar na igreja para ser colocada no altar quando a beata Detinha teve uma crise de nervos chegando a desmaiar. O padre passou um pouco de água benta na testa da beata, rezou e pediu  que os fiéis cantassem com fervor. Os cantos entoados na pequena praça repleta de gente acordaram a beata Detinha, que começou a chorar alto e ao mesmo tempo agradecer ao Jesus Salvador por ter ali mesmo perdoado seus pecados.

No dia de procissão havia tanta gente na igreja e na praça que uma agulha não cabia lá dentro nem no lado de fora.  As botinas novas apertavam  os meus  pés. Então pedi à minha mãe que me deixasse ir embora para casa, não queria ficar para ouvir a fala do padre encerrando a procissão. “Os calos estão doendo muito, não agüento mais”,  disse  aporrinhado, ameaçando chorar. Ela ordenou baixinho no meu ouvido que ficasse comportado, acrescentando que a procissão já estava chegando ao fim.

Preferi não obedecer minha mãe. Foi só ela se ajoelhar com os demais fiéis na igreja para fazer a oração do creio-em-deus-pai, de olhos fechados, para apressado tirar dos meus pés as botinas. Em casa disse à minha mãe que tinha resolvido agir daquela maneira para evitar que acontecesse comigo uma situação pior do que a da beata Detinha. Como ela desmaiaria ali mesmo na igreja. Mas a água benta que o padre passaria na minha testa, as orações e os cantos entoados com fervor pouco iriam adiantar para que eu não ficasse desmaiado durante muito tempo.

Claro que minha mãe compreendeu. Em vez de sermão, da sua voz bondosa, escutei que eu não me preocupasse. Não ia calçar mais aquelas botinas apertadas.

Mas muita gente reparou e achou que menino mimado daquele jeito não daria certo no futuro.

A Páscoa em Portugal há mais de Cinquenta Anos

Março 26, 2013

                                                                         Por Humberto Pinho da Silva

Depois dos dias fúnebres da Semana Santa, chegava o alegre domingo de Páscoa. A ressurreição de Jesus.

Nas nossas aldeias – que eram relicários de tradições, – os cristãos agrupavam-se no templo, entoando jubilosos hinos e aleluias.

 Do alto de rústicos campanários, tangiam festivamente os sinos, em animada e pueril gralheada.

Saiam os compassos, cada um com sua cruz alçada. Envergando alvas opas, homens acompanhavam o prestimoso abade ou seminarista, que levavam o Senhor de casa em casa.

Tapetes de verdes e flores, vestiam toscos caminhos e soleiras de entrada, que devotas mulheres colhiam com carinho e Amor.

Estalejavam alegremente foguetes, em alarido desenfreado; e alvoraçados cachorros, em roda-viva, pareciam, também, dizer: Chegou a Páscoa!… Chegou a Páscoa!…

As famílias reuniam-se à mesa, que permanecia coberta de branquíssima toalha, com o tradicional folar, amêndoas cobertas de açúcar, pão-de-ló e vinho fino.

No meu tempo de menino, no Sábado de Aleluia, nas igrejas, retiravam-se os panos roxos que recobriram as imagens, nos dias tristes de Quaresma. Os altares, que permaneceram despidos, engalanavam-se nessa hora de alvíssimas toalhas e vistosas flores de cores garridas, enquanto os sinos soavam ao desafio, em animada e ruidosa desgarrada.

Nas ruas, grupos de rapazes e moças, confeccionavam boneco de trapos, que suspendiam num poste. Era o “Judas”. Boneco que recolhia na pança, numerosas bombas carnavalescas, e lembrava certa figura, em regra, pobre diabo, bombo de festa do garotio.

Pegava-se, então, fogo aos pés, e para gáudio de todos, assistia-se ao queimar do “Judas”, que estourava entre gritos e palmas da rapaziada.

Nesse tempo, no dia de Páscoa, os afilhados visitavam os padrinhos, levando-lhes raminho de flores ou de oliveira, benzido em Domingos de Ramos.

Estes retribuíam com amêndoas ou dinheiro. A isso, chamava-se pedir o folar.

Em terras montanhosas, nomeadamente em Trás – os – Montes e Beiras, folar era, e ainda é, gigantesco bolo, recheado a carne, que tinha, por vezes, feitio de alguidar.

Mais romântico e citadino, eram as caixinhas de porcelana, que os namorados ofereciam com amêndoas. Eram de todos os tamanhos e feitios, algumas de grande beleza.

Bem diferente se comemora, nos nossos dias, o tempo pascal. Poucos são os que participam e vivem as cerimónias da Semana Santa; as velhas tradições quase desapareceram e, sem elas, morre um pouco da alma portuguesa, as raízes que a identificam.

Apresentação do Livro “O Pesadelo”

Março 26, 2013

Apresentação do Livro Pesadelo 26.03.2013

A Câmara Municipal de Cascais, o IADE-U Instituto de Arte Design e Empresa e a Orfeu Livraria Portuguesa têm a honra de convidar para o lançamento do livro “O Pesadelo” António Quadros e seis aventuras visuais a partir deste conto, de Armando Vilas-Boas.

A apresentação da obra está a cargo do Prof. Doutor Carvalho Rodrigues.

Data: 26/03/2013

Horário: 19 horas

Local: Centro Cultural de Cascais – Av. Rei Humberto II de Itália – Cascais

Verão de Francisco Carvalho

Março 21, 2013

No Dia Mundial da Poesia mais uma homenagem ao Poeta Francisco de Carvalho Por Cyro de Mattos

    O sonho sobreviverá

Enquanto houver um bico

Que cate o alpiste

Do tácito entendimento,

Leve para outros ares

O som aceso do azul.

Um bico que semeie o amor

De graça dando a messe justa

Na fazenda livre do ar.

O sonho sobreviverá

No verso que inventa cores,

Canto por onde me iludo,

Triste eu me canso de tudo,

Faço-me rouco quadrante solar.

Rima do poço da morte,

Vertente da vida sem data

Sendo ilha e desvario,

Súbito prodígio de luz

No verão que esparrama

Pendões debaixo de nuvens

Como o espírito de Deus

Que sopra sobre as águas.

O sonho sobreviverá.

——-//——-

A Morte do Poeta Maior Francisco Carvalho

Morre, aos 86 anos, o poeta Francisco Carvalho, cearense de Russas. Autor de vasta obra e ganhador do Prêmio Bienal Nestlé, com o livro Quadrante solar (1982), deixa uma herança lírica de altitude incomum, na poesia brasileira contemporânea, mesmo que desconhecido pelos dispositivos midiáticos e pela indiferença do circuito editorial dos grandes centros econômicos do país. Dono de uma obra poética de qualidades inquestionáveis, tanto no plano formal como no conteúdo, no poema de lastro clássico ou moderno, de verso extenso ou curto, esse poeta insulado em  Fortaleza mais seria estudado na universidade, reconhecido pela crítica e conhecido do leitor se publicado por editora de circulação nacional, de São Paulo e Rio, centros dinâmicos de um eixo  que  até hoje funciona  como tambor cultural do Brasil.

Há quem diga que a melhor poesia produzida hoje no Brasil está no Nordeste. A afirmação pode soar exagerada, mas deve ser considerada como procedente  com relação a alguns nomes que revelam em sua fatura poética uma produção  da melhor qualidade. O cearense Francisco Carvalho em Fortaleza, os baianos Florisvaldo Mattos, Ruy Espinheira Filho e Myriam Fraga em Salvador, Telmo Padilha no Sul da Bahia,  e o pernambucano Marcus Accioly no Recife  são nomes  que se inserem na pertinência da observação.

 O poeta Francisco Carvalho estreou com Dimensão das Coisas em 1966 e de lá para cá publicou mais de vinte livros de poesia, demonstrando assim sua fidelidade   à “arte de excitar a alma com uma visão do mundo através das melhores palavras em sua melhor ordem”, conforme definição de Geir Campos, calcada na fusão que fez das concepções  de Novalis, Eliot e Coleridge sobre a obra literária escrita em verso.

Na antologia Memórias do Espantalho, organizada pelo autor, publicada em 2004, o poeta cearense reuniu em alentado volume poemas escolhidos dos livros Os Mortos Azuis (1971), Pastoral dos Dias Maduros (1977), As Verdes Léguas (1979), Rosa dos Eventos (1982), Quadrante Solar (1983), Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, As Visões do Corpo (1984), Barca dos Sentidos (1989), Rosa Geométrica (1990), Crônica das Raízes (1992), O Tecedor e Sua Trama (1992), Sonata dos Punhais (1994), Artefatos de Areia (1995), Galope de Pégaso (1995), Raízes da Voz (1996), Romance da Nuvem Pássaro (1998), A Concha e o Rumor (2000), O Silêncio é uma Figura Geométrica  (2002) e Centauros Urbanos (2003).

Dia Mundial da Poesia

Março 21, 2013

dia mundial da poesia 21 de março Comemoração do Dia Mundial da Poesia nas Bibliotecas Municipais de Lisboa

Terra e Mar – Prefácio Livro Sonetos de Paulo Bomfim

Março 18, 2013

Por Lygia Fagundes Telles

Eis o poeta Paulo Bomfim galopando ou navegando pelos sonetos em estado de puro deslumbramento, eu disse galopando? Ou navegando?

Difícil, sim, localizar o poeta, ou melhor, classificá-lo ajuizadamente, digamos, porque ele nos escapa sempre, indomável. E solitário em sua trajetória que de repente é interrompida “quando alguém atira a rede”.

E nós, demônios, peixes e suicidas,
Penetramos por meio de palavras
Aquele que recolhe nossas vidas.

Influência portuguesa nas suas mais profundas raízes? Sim, talvez, e se deixo aí esse prudente talvez é porque também nos escapa uma lúcida tentativa de filiação. Sabemos, isto sim, que o poeta ama a liberdade e nesse anseio de desatar os nós ele se inspira desafiante ou quase arrogante na tentativa de desvendar os mistérios da criação poética.

Volto a insistir nesse anseio de liberdade que transparece nos sonetos de Paulo Bomfim. Contudo, a métrica desses sonetos é perfeita e perfeita a sonoridade das rimas neste livro que fala da vida e da morte. Que fala com insistência da aventura do amor. As interrogações do poeta em torno dos dias mortos são aflitivas e agora não resisto ao impulso de lembrar aqui essa inspirada aflição:

Os dias mortos, sim, onde enterrá-los?
Que solo se abrirá para acolhê-los
Com seus pés indecisos, seus cabelos,
Seu galope de sôfregos cavalos!

O poeta se desespera em face do tempo e pergunta em meio da perplexidade o que fazer diante da desintegração desse tempo. “Fártuo fogo de febre e de fuligem” que também é um canteiro em pleno mar, onde enterrar esses dias?

Em nossa carne, sim, em nossos portos
Quando o fim regressar à própria origem,
Repousarão também os dias mortos!

O crítico Nogueira Moutinho, comentando o alto nível intelectual de Paulo Bomfim, chega a compará-lo assim a um verdadeiro alquimista em meio da “fusão dos metais nessas temperaturas elevadíssimas que surge ao longo dos poemas, a cintilação do aurum purum”.

A esse ouro também se refere o escritor Gilberto de Mello Kujawski no prefácio admirável que escreveu sobre o poeta. Tece comentários em torno da sucessiva periodicidade de prestígio e desprestígio do soneto na história das escolas literárias brasileiras. Sim, o soneto andou e desandou na Escola Romântica, aquela apaixonante Escola de Morrer Cedo, como a chamou o poeta Carlos Drummond de Andrade. E a Escola Parnasiana, a bem penteada escola tentando botar ordem na casa, ou melhor, ordenar o inferno romântico. Ainda o ideal de beleza, sem dúvida, mas com maior apuro no ritmo e na forma. A reação irônica, mais do que irônica, a reação sarcástica dos modernistas radicais desvalorizando o soneto “Como se este não passasse de um simples jogo de armar, brinquedo próprio de estetas e narcisistas refinados, sem o menor sentido de responsabilidade pelo destino do homem e da história” − acentuou Mello Kujawski.

Passei pelas escolas literárias feito um gato por brasas para concluir, afinal, que não vejo Paulo Bomfim enquadrado em nenhuma desses escolas: no tropel que lembra o sonho dos bandeirantes ou quando entra pelo mar adentro, ele vai sozinho. Ou melhor, acompanhado, às vezes, por um Raul de Leoni, por um Guilherme de Almeida e por um Jorge de Lima. A essa trilogia eu quero acrescentar Vinicius de Moraes, aquele dos sonetos.

Paulo Bomfim faz muitas perguntas na tentativa de decifrar a si mesmo e ao próximo. Consegue explicar esse embrulho que é o ser humano?

Neste livro o leitor é cúmplice há-de encontrar a luminosa resposta.

Fonte: www.paulobonfim.com

Lançamento do n° 11 da Revista Nova Águia

Março 18, 2013

Lançamento nova águia 19.03.2013

Um poeta brasileiro que veio da Bielorrússia

Março 15, 2013

                                   Por Adelto Gonçalves

I

Que seja um bielorrusso naturalizado brasileiro um dos melhores poetas do Brasil deste século 21 é mistério que só mesmo a arte poética pode explicar. Que em tão poucos anos de Brasil – menos de oito – tenha encontrado tempo e disposição para conhecer a fundo a poesia praticada no País desde a época colonial e em apenas dois livros apresentar uma proposta poética inovadora é questão que, à primeira vista, foge à compreensão do leitor comum. Mas foi isso mesmo o que se deu com Oleg Almeida (1971), que lançou, em 2011, Quarta-feira de cinzas e outros poemas (Rio de Janeiro: Sete Letras), laureado em novembro de 2012 com o Prêmio Literário Bunkyo da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social (São Paulo)..

E não há nenhum exagero no que se escreve aqui, pois apenas se confirma o que Cláudio Murilo Leal expôs no prefácio que produziu para este livro. Lá diz, sem nenhum favor ou encômio hiperbólico de encomenda, que Oleg Almeida evitou o discursivismo enxuto, sem metaforização hiperpoética, da chamada geração de 45 e também as reinvenções letristas da vanguarda concretista (leia-se irmãos Campos e Décio Pignatari). Para Leal, Oleg Almeida soube ainda livrar-se do arremedo de dicção reiterativa da vertente metapoética de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). E tampouco em sua poesia nada há que o aproxime do pieguismo dos neorromânticos. Não é pouco.

Naturalmente, Oleg Almeida não caiu do céu em solo brasileiro. Dessa herança do passado da poesia brasileira, o poeta soube retirar um pouco de cada fenômeno poético e de cada período para construir uma poesia que se mostra única porque diferente do que se faz normalmente no País. Obviamente, sem deixar de acrescentar a herança eslava que recebeu e que vem de Alexandr Pushkin (1799-1837), o maior poeta russo de todos os tempos e o renovador da linguagem literária russa, pois que todos que vieram depois dele – Dostoiévski (1821-1881), Tolstoi (1828-1910), Tchekhov (18601904), Gorki (1868-1936), Anna Akhmatova (1889-1966) e outros tantos – foram por ele influenciados.

Quem duvidar que leia este “Quarta-feira de cinzas”, que dá título à obra e constitui um poema longo dividido em 13 atos que conta uma experiência bem brasileira, que costuma atrair sempre o olhar estrangeiro: o Carnaval. Mas o faz como uma metáfora da vida vivida, o que sobra de uma experiência, os “resíduos da festa”. Eis o começo desse poema:

Ela dorme, rainha,

prostrada na cama de luxo,

desnuda no centro do mundo

domado por sua beleza.

São dez da manhã,

e os raios do sol estival

atravessam, discretos, o quarto,

tirando da quente penumbra

(purpúrea por terem a cor da paixão

as pudicas cortinas)

um par de sapatos – dois frágeis barquinhos

deixados à beira da praia recôndita pela maré

vazante – primeiro;

depois umas roupas que guardam ainda

um pouco de seu predileto perfume

não sei como chamam, almíscar ou âmbar,

àquela fragrância a cobrir

de gotículas quase palpáveis de néctar

o corpo em pelo (…).

II

Em Quarta-feira de cinzas e outros poemas, há ainda cem “haicais urbanos”, forma de origem japonesa, o haiku, que desembarcou no Brasil há cerca de um século e hoje conta com muitos praticantes e estudiosos. Se o haicai é a arte de anotar sensações fugazes, de forma despojada e sensível, especialmente as provocadas pela passagem do tempo, representadas, por exemplo, nas estações do ano, os poemas de Oleg no gênero chegam próximo da perfeição. Como neste exemplo:

Não finge nunca

 ser feliz ou infeliz

o sol da tarde.

O haicai pode ser também um poema concentrado que capta em poucas palavras a expressão de um momento:

Disse, sincero,

ao açougueiro: “Mano,

chega de sangue!”

Ou ainda, como numa fotografia que “congela” a imagem, o haicai registra o abstrato, o segredo, o sentido:

Minhas idéias

são como os meteoros:

fulgem e somem.

III

Em seu livro de estreia, Memórias dum hiperbóreo (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2008), já há uma ressonância do romance em versos Eugênio Onegui, de Pushkin, como bem observou na apresentação Marco Lucchesi. Trata-se de uma elegia que, à la Marcel Proust (1871-1922), empreende uma busca do tempo perdido. Poeta de dois mundos, Oleg reconstitui de maneira insinuante as duas terras em que viveu e vive, mas de forma alegórica: de um lado a Grécia, ou seja, a Corinto mítica – não a de hoje, em ruínas –, aquela que o apóstolo Paulo (ca.5d..C-67d..C) visitou para levar a palavra de Cristo, e, de outro, a Finisterra, igualmente mítica, ao Sul. Ambas podem ser lidas como a Bielorrússia e o Brasil, ou Gômel, a cidade ele onde nasceu, e Brasília, onde vive hoje.

Isso fica mais claro quando se sabe que os hiperbóreos são um povo lendário que, para os gregos antigos, habitavam o extremo Norte da Terra. E quando o poeta diz:

Eu nasci muito longe daqui,

lá no norte severo,

na terra beata, dos hiperbóreos

além deste mar bravio situada,

inatingível. (…)

Ou quando recorda a casa paterna:

Na minha casa, se bem que tivesse um só andar,

comiam-se ótimas carnes e pães excelentes,

bebiam-se vinhos de uva e maçã,

cada dia, usavam-se finas toalhas e pratos ornamentados. (…)

Ou quando lembra o dia em que deixou a terra dos hiperbóreos e a cidade de Gômel:

Adeus, minha pátria bela:

cidade, onde passei a infância feliz

e da áurea juventude colhi as primícias;

casa em que moraram

três gerações de minha família;

pedras e árvores

de que nem no leito de morte me esquecerei.

Adeus, minha pátria…

Como são boas as tuas cerejas vermelhas e pretas! (…)

Em Gômel, presenciou a “bárbara destruição da União Soviética”, como diz, episódio de que também fala, de forma alegórica, em Memórias dum hiperbóreo . “Tinha de mostrar o passaporte para comprar, digamos, um quilo de açúcar”, recorda..

O mundo em que o poeta chegou, como a uma Ítaca da qual nunca houvera partido porque é aquela que carregamos no íntimo, o nosso aqui e agora, de que fala o poeta Antônio Cicero em breve apresentação na contracapa deste livro, é o Brasil (ou a Brasília feérica), o que pode ser lido alegoricamente nestes versos finais:

Contudo Alexandria – se bem que não seja o nome real

da metrópole onde resido – tem míseros bairros e bairros de luxo,

palmeiras, calçadas expostas ao sol ardente,

bibliotecas em que, do papiro transcritos,

os versos homéricos avizinham os livros de auto-ajuda,

folganças e pesadelos de sobra;

contudo eu mesmo tenho emprego fixo,

televisão a cabo

e umas garrafas de vinho bastante caro na geladeira

e não me sinto, graças a Deus,

estrangeiro a ponto de abdicar ao sonho em prol da memória. (…)

IV

Oleg Andréev Almeida nasceu numa família humilde, mas culta. Estudou numa típica escola dos tempos soviéticos, a qual tinha Homero (sec.VIII a.C), Shakespeare (1564-1616), Cervantes (1547-1616), Tolstoi e Dostoiévski no currículo do ensino médio.  Estudou também as letras francesas numa pequena, embora tradicional, instituição, a Escola Central das Letras Estrangeiras em Moscou (1989-1992).

A levar-se em conta o que escreve no prólogo em versos que escreveu para Quarta-feira de cinzas e outros poemas, se dependesse da vontade de seus pais, teria se formado em medicina, que “a saúde é bom negócio”, como diziam com insistência, ou dos avós, que o queriam ver  ministro no regime soviético  ou, na pior das hipóteses, funcionário da prefeitura. Não se pode dizer que não se tenha preparado para isso: é pós-graduado em Gestão Financeira pela Academia da Fazenda subordinada ao Governo da Federação Russa (1999). E fez carreira como tradutor, analista e executivo da área comercial.

Em Gômel, publicou poemas e artigos em periódicos e ainda em coletâneas de poesia bielorrussa.  Trabalhou, por muito tempo, na iniciativa privada – “máxime para não morrer de fome”, diz – e aprendeu o idioma Português por mera curiosidade, usando dois livros (O Alienista, de Machado de Assis, e Crônicas, de Luís Fernando Veríssimo) e um curso de português editado nos Estados Unidos. Imigrou para o Brasil com 34 anos de idade, em 2005.  E, desde então, mora em Brasília e trabalha como tradutor de russo. Casou-se com uma brasileira e começou a traduzir diversos tipos de textos. “Escrevi alguns versos que, inesperadamente, foram publicados em antologias amadoras”, diz o poeta, que se naturalizou brasileiro em fevereiro de 2011.

É também tradutor de obras literárias e científicas.  Traduziu do francês  O esplim de Paris: pequenos poemas em prosa, e outros escritos, de Charles Baudelaire (São Paulo: Martin Claret, 2010); e Os cantos de Bilítis: romance lírico, de Pierre Louÿs (Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2011). Verteu para o russo Tu país está feliz, de Antonio Miranda (Brasília: Fundo de Apoio à Cultura, 2011);  Canções alexandrinas, de Mikhail Kuzmin (São Paulo: Arte Brasil, 2011); Pequenas tragédias, de Alexandr Pushkin (São Paulo, Martin Claret, 2012); Diário do subsolo, de Fiódor Dostoiévski (São Paulo: Martin Claret, 2012), e O jogador: do diário de um jovem (São Paulo: Martin Claret, 2012).

Sócio da União Brasileira de Escritores (UBE), seção de São Paulo, colabora com as revistas eletrônicas EisFluências e (n.t.) – Revista Literária em Tradução, administra o projeto Stéphanos: Enciclopédia virtual da poesia lusófona contemporânea e atua como agente cultural.. Participou de 15 antologias e coletâneas de poesia lusófona editadas no Brasil e em Portugal, inclusive da Câmara Brasileira de Jovens Escritores, do Rio de Janeiro, e do grupo literário Celeiro de Escritores, de Santos-SP, e de várias editoras brasileiras.

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 QUARTA-FEIRA DE CINZAS E OUTROS POEMAS, de Oleg Almeida. Rio de Janeiro: Sete Letras, 110 págs., 2011, R$ 29,00.

MEMÓRIAS DUM HIPERBÓREO, de Oleg Almeida. Rio de Janeiro: Sete Letras, 75 págs., 2008, R$ 25,00. E-mail: editora@7letras.com.br Site: http://www.7letras.com.br

Brasil: Dia Nacional da Poesia

Março 14, 2013

Em homenagem ao dia nacional da Poesia no Brasil um lindo poema da nossa poetisa e colaboradora Raquel Naveira.

MONTEZUMA

Por Raquel Naveira

O imperador Montezuma
Coloca sobre a cabeça
O cocar verde de pluma,
Entre a fumaça de incenso,
Tenta afastar os maus presságios:
Vira luzes estranhas na bruma,
Incêndio no templo
E fora avisado que homens viajavam
Em navios de asas brancas
Sobre a espuma.

O reino de Montezuma
Ruma para o fim,
Não adiantará aliar força e sabedoria
Contra um fantasma.

Montezuma,
Em transe,
Não oferece resistência
E a profecia se consuma.

(do livro “Stella Maia: poemas sobre a conquista do México pelos espanhóis”)

Paulo Bonfim e o muro da poesia

Março 13, 2013

Por  Renato Nalini

Vocações há que escolhem uma senda – ou são por ela escolhidos? – e a percorrem sem variação, durante toda a vida. Não me parece coerência o espírito se confinar em uma única forma de cultura. Talvez por isso, o que sempre admirei em Paulo Bomfim foi o seu desembaraço nos domínios mais variados. A capacidade que tem de falar com igual propriedade e idêntica sutileza sobre a História de São Paulo, sobre filosofia, sobre fatos curiosos que dariam outra Mil e Uma Noites, melhor traduzidas neste caso por Mil e um Almoços Deliciosos preparados pela Lúcia, naquele paraíso que alguns daqui frequentam com assiduidade.

Domina todos os assuntos e em todos eles a graça de seu estilo, o sabor na escolha das palavras, a candura que emana de um homem incapaz de ver defeitos em qualquer próximo. Mesmo aqueles que nos santificam, por nos atormentarem.

Predestinado à universalidade, provido de talento para exercitar seu espírito em todas as direções, é uma das inteligências mais lúcidas, mais vivas, mais inebriantes dentre as muitas com que fui premiado nestas quase setenta décadas.

Seu sorriso enciclopédico, sua visão tão refinada e seu cavalheirismo suscitam aprovação geral. Sua existência o tornou transparente diante de si mesmo. Pagou tributos por ser quem é. Mas enfrentou o sofrimento com estoicismo poético. Nunca cessou de jorrar essa usina produtora de beleza e lenitivo. “Se a língua cria a realidade e a poesia cria a língua, quem cria a poesia?”[1]PAULO BOMFIM.

É como poeta que o povo o conhece. Domador de palavras, amante da língua, de sua beleza, de sua riqueza, de seu mistério e de seu encanto, da qual poderia dizer: “Ela é meu compromisso, através dela concebo minha realidade e por ela deslizo rumo ao seu horizonte e fundamento, o silêncio do indizível. Ela é minha forma de religiosidade. É, quiçá, também a forma pela qual me perco”[2].

Há uma simbologia evidente na permanência da poesia nos muros de ANCA e CARLINHOS SALEM, decorrido já um ano. Doze meses, trezentos e sessenta e cinco dias resistindo à pichação que enfeia a metrópole. Até a delinquência – sim, pichar é delito! – respeita a poesia. Não conspurcou a “expressão concreta e artística do intelecto humano em língua emocional e rítmica”[3]. PAULO BOMFIM é legítimo herdeiro daqueles heróis que admira e já cantou: os bandeirantes. “O poeta representa a ponta da cunha que a conversação força para dentro do indizível. Os poetas são os nossos bandeirantes, que se expõem, em nosso benefício tanto quanto no seu, ao perigo da aniquilação pelo indizível. Longe de estarem isolados, são, justamente por terem se recolhido, os condutores da conversação”[4].

Os muros servem de proteção e as muralhas habitam o inconsciente coletivo desde sempre. Fala-se em muralhas ciclópicas, edificadas na civilização micênica, obra dos ciclopes, gigantes que deram a Zeus os raios de que se serviu para derrubar Cronos, seu pai, na origem da era olimpiana. Os muros de ANCA e CARLOS SALEM tornaram-se também ciclópicos, pois eternizam a poesia de um gigante, o poeta PAULO BOMFIM. Gigante no seu talento e erudição, mas gigante ainda maior pelo seu enorme coração, onde cabemos todos nós e quem mais vier.  


[1] GUSTAVO BERNARDO, Prefácio a Língua e Realidade, de VILÉM FLUSSER, 3ª ed., São Paulo, Annablume, 2007, p.9.

[2] VILÉM FLUSSER, op.cit., p.13.

[3] Definição de poesia da Enciclopédia Britânica, citada por VILÉM FLUSSER na obra citada, p.181.

[4] VILÉM FLUSSER, op.cit., idem, p.187.