Arquivo de Abril 2011

Dignidade Nacional

Abril 29, 2011

Por João César das Neves

Nas próximas eleições existe um elemento fundamental em jogo: dignidade nacional. Se, como várias vozes alvitram, o partido de José Sócrates tiver um resultado digno, a nossa democracia sofrerá um rude golpe. Portugal será a chacota mundial. Não se trata de uma questão de votos, mas de elementar racionalidade.

Aqueles dirigentes que presidiram seis anos, quatro dos quais em maioria, aos destinos nacionais, não podem ser poupados. Depois de longos tempos a negar a realidade, a manipular a imagem, a pintar quadros ilusórios em que cidadãos e mercados não acreditam, só ficarão impunes com descrédito para o sistema político.

Nos últimos 32 meses, ou o Governo ignorava a realidade ou sabotou deliberadamente a situação nacional. Não há outra explicação. Se a charada da vitimização tiver êxito eleitoral, isso mostra não a qualidade do Governo mas a tolice (e, a estupidez) dos eleitores. Com a chantagem da instabilidade, ficção da política de sucesso, desplante de negar o óbvio, Sócrates andou anos a dançar na borda do vulcão. Agora que o País caiu lá dentro, o PS não pode ser poupado. Como na Grécia e na Irlanda, Portugal precisa de que ele perca forte a 5 de Junho.

Antigamente, algo evitava estas circunstâncias. Chamava-se vergonha. O responsável pela condução nacional ao colapso, mesmo considerando-se tecnicamente inocente, assumia politicamente a situação e afastava-se para dar lugar a outros. Mas esse pudor político anda muito arredado das praias nacionais, como andou no auge do Liberalismo oitocentista e na ruína da Primeira República. Mais que a incompetência e corrupção, era o descaramento dos responsáveis que então destruía a vida nacional. Foi essa a nossa experiência democrática até meados do século XX.

Por isso, após 1974 tanto se temia o regresso da liberdade, que nunca rodara bem nestas paragens. Surpreendentemente, o regime funcionou. Funcionou mesmo muito satisfatoriamente. Nas três primeiras décadas após Abril, apesar de inevitáveis tropelias e abusos, presentes em todos os regimes, existiu honra, dignidade, elevação, acompanhada por alternância e desportivismo. É isso que tem resvalado ultimamente. As próximas eleições mostrarão se regressámos à antiga podridão ou se foram lapsos passageiros.

Mas não há situações em que, após o desastre, a administração permanece? Sim, nos casos de Mugabe, Gbagbo e, até há pouco, Mubarak ou Kadhafi. É essa semelhança que nos condena.

Quer isto dizer que o Partido Socialista tem de ser punido? Este PS sim! Aliás, o partido é uma das grandes vítimas da situação. A reeleição estrelar de José Sócrates, consagrada no XVII Congresso deste fim-de-semana, com votações à Mugabe, apenas manifesta isso de forma pungente. Quando acabar o delírio, será preciso salvar o partido deste longo pesadelo que se arrisca a afectá-lo gravemente. Além de arruinar o País, o consulado Sócrates, na única maioria absoluta socialista, danificará seriamente a sua área ideológica. Na ânsia de se salvar política e pessoalmente, o primeiro-ministro enterra aquilo mesmo que diz defender.

Uma das declarações originantes na nossa democracia deu-se a 26 de Novembro de 1975. O vitorioso major Ernesto Melo Antunes disse na televisão, relativamente aos vencidos: “A participação do PCP na construção do socialismo é indispensável.” Agora é bom lembrar que o Partido Socialista é também indispensável à democracia. Estes meses são dos piores da sua ilustre história. Mas o longo delírio socrático, que termina nesta louca corrida para o abismo num autismo aterrador, não pode servir para desequilibrar duradouramente a estrutura partidária nacional. Há que salvar o PS de si mesmo.

No dia 5 de Junho, os portugueses votarão. Costuma louvar-se a sabedoria do povo. É fundamental que os eleitores, entre alternativas mornas e demagogia dura, compreendam a situação. A escolha hoje não é de políticas. Após 32 meses de negação, ilusões e derrapagem, quem for eleito terá grande parte da sua tarefa definida pelos nossos credores.

O QUE ESTÁ EM CAUSA É MESMO A DIGNIDADE NACIONAL.

Fonte: Diário de Notícias Lisboa

Convite: Exibição de “Amália – o Filme”

Abril 18, 2011

O Centro de Estudos Luís de Camões, órgão cultural do Clube Português, tem o prazer de convidar V. Exª. e Exmª. Família para assistir à projeção do filme português Amália – O Filme” de Carlos Coelho da Silva, direção de produção de Gerardo Fernandes. 

Apresentação da escritora e professora universitária Raquel Naveira – a sessão integrará as comemorações do Descobrimento do Brasil.

Exibição do filme, 27/4/2011 às 19h30.

Após o filme, será servido um “cocktail”, oferecido pela Diretoria do Clube Português e pelo Moreno’S Buffet.

 Prestigie a reunião com sua presença e convide os seus Amigos

Entrada franca

 E-mail: centrodeestudosluisdecamoes@clubeportuguessp.com.br

Rua Turiassu, 59 – Tel: 3663-5953

O Que Caminha Viu em Vera Cruz ou o Achamento Recriado pelo poeta Sidónio Muralha

Abril 18, 2011

por Sidónio Muralha

 Outra vez conquistemos a distância
Do mar ou outra, mas que seja nossa

                                       Fernando Pessoa

Quando ao mar se rasgaram as janelas
O pinhal de Leiria estremeceu

E viu-se transformado em caravelas
Olhando estrelas, entre mar e céu.

“SENHOR,

A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi, segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e as nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, onde andamos todo aquele dia em calma, à vista delas.

Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de Abril, estando da dita ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E, quarta-feira seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam fura-buxos.

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o MONTE PASCOAL e à terra – a TERRA DA VERA CRUZ.

Ao longe o mar vestido de procela
Zeloso do domínio que era seu

A natureza mãe única mestra

Juntava seiva e mar na mesma orquestra.

“Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.

Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que Ihes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho Ihes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitania. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.

Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que Se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

Olhando ao longe, olhando o mar distante
Desenharam os braços do Infante

Num gesto definido, rumo certo

Mais que certo, forte, dominante.

“Feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.

O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.

“Mostrararn-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-Ihes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-Ihes uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados”.

A distância difícil fez-se perto
O mar adivinhou o navegante

E trouxe lendas, mêdos, o disfarce

De quem se entrega e luta ao entregar-se

“Deram-Ihes ali de comer: pão e peixe cozido, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provavam logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada nem quiseram mais. Trouxeram-Ihes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca que lavaram, e logo a lançaram fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas acenou que lhas dessem, folgou muito com elas lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.

Muitos deles ou quase a maior parte dos que davam ali traziam aqueles bicos de ossos nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvi dá por todos com muito prazer e devoção.

E o pinhal de Leiria depois disto
Entrou no mar, os troncos foram mastros
A seiva sangue, o sangue a cruz de Cristo
A cruz de Cristo a fé de novos rastros.

“Acabada a missa, devestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob sua obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.

Viu rasgar-se um mundo nunca visto
Viu por toda a parte os mesmos astros
Destronando momentos infelizes
Lançou por todo o mar suas raízes.

“E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se Ihes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens, para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros destes degredados.

Sobre isto, acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto Ihes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todos mais aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.

Dobrou cabos longínquos com
Aqui além deixou a sua gente

E desdobrou a língua portuguesa
Norte a sul poente ocidente

“Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre alas andava um coxa, de joelhos até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própia cor. Outra trazia ambos os joelhos, com curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma.

Também andava ai outra moça, com um menino ou menina no colo, atado com um pano (não sei o quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.

Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. 

Alem do rio, andavam muito deles dançando e folgando uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo e um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito.

 Raiva, perdão, amor, praga ou reza
A língua ultrapassa o que se sente

O que se sente passa, a língua fica

Falada em todo o mundo e sempre rica.

 “Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito, limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser.

Mandou o Capitão àquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma cousa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Doiro e Minho.

Língua e mar como a frase se arredonda
E se espraia mais tarde quando o culto
Da Pátria desmaiada é como a onda

Que toma consciência do seu vulto.

“E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem lá andar entre eles, e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noute.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitania. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo e outra no outro.

Sai das bocas puríssima redonda
Descruza os braços, despedaça o insulto
E no lúcido alvor da madrugada

O que não diz a língua, diz a espada.

 “Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muitos, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro de Maio, pela manhã saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lhe a redor de si. Porém ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.

Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.

Esse que o agalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado com S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas, amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fazera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.

E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei. Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.

 Beijo as mãos de Vossa Alteza.

 Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha

Foi sempre assim, antes do mar ufano

Nos pertencer, nos ter pertencido

Já gritava c bramia o velho oceano

No nosso gesto franco e destemido.
Pelas faces de Inês rolava Humano

Nos versos de Camões enternecido

Portugal reza a história do seu terço

Feito de conchas tendo o mar por berço.

Um dia, erguendo os olhos para o espaço
Foi outra vez por sobre o mar romântico
Olhando os ares em sinfonias de aço
Cruzando lá de cima o grande Atlântico
Juntou dois paises num abraço

Fê-los vibrar aos dois num mesmo cântico.

– Desmentiu quem o chamava pequenino
Tendo nas suas mãos um tal destino.

“A COMARCA”, “ARGANILIA” E “A COMARQUINHA”

Abril 18, 2011

Por João Alves das Neves

Toda a História se baseia em documentos – e tudo o resto é conversa fiada. Repetir o que nos disse o amigo nada vale se não tiver uma base documental. Já lemos uma série de “estórias” sobre a Imprensa que nem merecem a catalogação. Ainda recentemente, um pretenso “estoriador” classificou como jornal uma revista da emigração: quer dizer, ele nem viu a publicação, mas certamente ouviu dizer…

O que se passa no jornalismo da emigração acontece também com freqüência na área regional. E na “grande imprensa” nem se fala, pois o hábito é ignorar a Província. Foi com o intuito de discutir a questão que a revista Arganilia tentou estabelecer o primeiro inventário da Imprensa da Beira Serra (nº 12, ano 2000, Lisboa). Foram reunidos mais de uma dezena de autores, cada um versando livremente o seu tema, mas o “inventário” contou apenas com dois trabalhos sobre o tema – Bosquejo histórico da Imprensa Arganilense,  de Regina Anacleto, e outro da nossa autoria, Subsídios para o Inventário da Imprensa Arganilense.

Mais tarde, ampliámos o nosso estudo: Para a História dos Jornais e Revistas Arganilenses (nº 20 de Arganilia, ano 2006), e recentemente alargámos a série com mais 3 artigos na “Comarca”  restaurada, depois da desastrosa falência da empresa e do período vazio entre 10 de junho de 2009 e 23 de dezembro de 2010, o que significa que, tendo aparecido em 1 de janeiro de 1901, as edições ainda não somaram 111 anos. Talvez as datas não tenham grande importância, porém os historiadores estarão perfeitamente informados.

Entretanto, a nova A Comarca de Arganil reapareceu e os seus mais antigos colaboradores sentem-se concerteza recompensados, apesar do longo hiato de quase um ano e meio. Aliás, pouco há a acrescentar à História coordenada pela escritora Regina Anacleto, malgrado as falhas de atenção a certos participantes, entre os quais apontamos António Lopes Machado, redactor, durante meio século, em Lisboa do jornal centenário que em boa hora passou a dirigir.

Remetendo-nos à História dos 100 anos, limitar-nos-emos a mencionar a relação estabelecida sob a autoridade de Regina Anacleto com sobre os diretores/editores do periódico, desde o 1º número, em 1-1-1901:

 1) 1901-1904 A. J. Rodrigues, proprietário e editor responsável;

2) 1905: Francisco Ignácio Dias Nogueira, director, e António A. B. Gama editor;

3) 1906: Francisco Ignácio Dias Nogueira, director, António A. B. Gama e F. Gomes Júnior. Editores;

4) 1907: Francisco Ignácio Dias Nogueira, director, e F. Gomes Junior, editor;

5) 1908-1909: Francisco Ignácio Dias Nogueira, director;

6) 1910: Francisco Ignácio Dias Nogueira, director, e Eugénio Moreira, diretor e administrador, que se manteve na direcção do jornal até 1942, e veio a ser substituído por A. Lopes da Costa no cargo de director efectivo; 1943-1955 posição que só deixou de exercer quando foi substituído em 1958 por João Castanheira Nunes. De 1982 a 1999 a direcção plena do jornal foi assegurada por Francisco Carvalho da Cruz, que teve Jorge Moreira no cargo, no ano 2000, até 2009, quando a empresa proprietária do jornal, requereu a falência.

A revista “Arganilia” e “A Comarquinha”

A revista “Arganilia” publicou o seu primeiro numero no 2º semestre de 1992 e o seu propósito foi o de abordar os temas culturais da Beira-Serra. O titulo foi inspirado, em 1912, pelo então jovem jornalista, escritor e diplomata Alberto da Veiga Simões, que não realizou o projecto por ter sido nomeado Cônsul de Portugal em Manaus. Porém, o seu espírito motivou-nos ao lançamento da publicação 70 anos mais tarde.

Estão publicados 23 volumes que destacam não só a obra de Veiga Simões mais também as do poeta Brás Garcia Mascarenhas, Visconde de Sanches de Frias, José Simões Dias, Condessa das Canas, Prof. Padre Antonio Nogueira Gonçalves, Conselheiro Albino de Abranches Freire de Figueiredo, Monsenhor Augusto Nunes Pereira, Dr. Fernando Vale, Prof. Dr. Marcelo Caetano e Profª Drª. Regina Anacleto. Paralelamente foram editados volumes sobre Arganil, Góis, Pampilhosa da Serra, Poiares, Coja, Oliveira do Hospital e Lousã, assim como nºs. dedicados à imprensa Arganilensse e ao ensino.  

Trata-se de uma publicação que já reúne uma boa parte de estudos sobre o patrimônio cultural da Beira-Serra. A larga maioria das edições foi dirigida por nós e por António Lopes Machado. É a primeira revista da nossa região, o que tem provocado inúmeras tentativas de utilização de pessoas não autorizadas, do ponto de vista intelectual. Não obstante, os seus mentores pretendem continuá-la, tanto mais que aspectos importantes do patrimônio histórico-cultural da região estão dispersos ou ainda não foram analisados.

Quanto ao suplemento infanto juvenil “A Comarquinha” foi durante 16 anos um caderno de “A Comarca de Arganil”, sendo o ultimo volume de 03 de dezembro de 2008. Foram publicados 216 números, tratando de assuntos de feição regional, especialmente para os jovens. O seu propósito foi sempre o de despertar o interesse das crianças e dos adolescentes pela leitura da “A Comarca” de amanhã.  

Com este quarto artigo sobre a imprensa arganilense, concluímos por agora nossa pesquisa e os nossos comentários acerca de um tema sempre atual e não aprofundado até hoje.

A Pátria Doente

Abril 18, 2011

 Por. A. Gomes da Costa

Outro dia, o “Financial Times” publicou um comentário, do jornalista americano Edward Hadas, que mostra o desprestígio e o estado de penúria financeira em que se encontra Portugal. Mesmo a título de ironia, o jornal inglês saiu-se com uma sugestão para aliviar o descalabro que reina em Lisboa: que se inverteram os papéis históricos e que Portugal (antiga metrópole) abandone a União Européia e se deixe anexar pelo Brasil (antiga colônia). A “brincadeira” podia ter um complemento: é que nem uma pequena parcela da dívida soberana portuguesa, considerada pelas agências de risco como muito próxima do “lixo”, interessa ao Ministro da Fazenda, Sr. Guido Mantega, que parece ter ficado preocupado quando a Presidente Dilma Roussef disse em Coimbra que o Brasil estava pronto a ajudar Portugal. E a maneira mais direta dessa ajuda seria a aquisição de títulos da dívida, o que não só aliviaria a pressão dos mercados, como também reduziria o custo que o Brasil está a pagar pelo “carregamento” das reservas cambiais que vem acumulando nos últimos anos. Se ao Ministro Mantega não agradam as Obrigações do Tesouro, por falta do “triple A” das agências de “rating”, imagine-se o desapreço pela cama de mogno de D. Pedro, num dos quartos do Palácio de Queluz, ou as cinzas de Pedro Álvares Cabral, guardadas com as de sua mulher na igreja de Santarém…

A verdade é que Portugal atravessa um dos períodos mais dramáticos desde a queda do “antigo regime”. Atravessou o período da descolonização e da reforma das instituições; foi superando o “bota-abaixo” do “gonçalvismo”, quando o país parecia um “manicômio em autogestão”; valeu-se do ouro e das reservas deixados por Salazar para sobreviver às crises dos anos 70 – e, com a entrada na União Européia e o acesso às verbas comunitárias, deu um salto para o desenvolvimento, modernizou as infra-estruturas e criou condições de vida muito melhores para a população.

Entretanto, veio a crise de 2008 e, pior do que isso, os portugueses suportaram governos desastrosos que juntaram a incompetência à arrogância, e que conduziram o País a uma situação financeira insustentável: praticamente sem crescimento econômico na última década, com uma taxa de desemprego de cerca de 11%, carregado de dívidas, tanto por parte do governo como das famílias, e entregue a uma classe política do piorio, que não inspira confiança, nem dentro, nem fora do País.

É constrangedor olhar para o Portugal de hoje: o governo demitese, porque os partidos da oposição não quiseram aprovar mais um plano de contingências; o Presidente da República dissolve a Assembléia e convoca eleições legislativas; os socialistas atiram a culpa dos embaraços sobre a oposição e esta pergunta: Quem fez a gastança descontrolada e pôs Portugal de cócoras? Quem teve o cinismo de lançar projetos megalômanos, como o do TGV ou o de um novo aeroporto, com o País à beira da bancarrota? Quem, às vésperas das últimas eleições, aumentou o salário do funcionalismo para ganhar votos e agora cortou esses salários? Quem vem enganando o povo com a retórica populista e cínica dos coveiros da Pátria?

Mesmo sem saber como o país vai sobreviver nos próximos dois meses (ou seja, até às eleições fixadas para 5 de junho) pois, de um lado, há a recusa do governo socialista em pedir socorro ao FMI ou a Europa e, do outro, a pressão dos credores (para renovar empréstimos já estão exigindo juros de quase 10% ao ano) os portugueses defrontam-se agora com um dilema que ultrapassa as ideologias e as diretrizes dos partidos, as querelas e os vícios do Terreiro do Paço, as cambalhotas do governo e as resistências da esquerda palradora, para decidirem, através do voto, se querem um Portugal desmoralizado e entregue aos demagogos e aos mentirosos da praça, ou se vão optar pela escolha de políticos empenhados em manter os valores e as qualidades de um povo, um País sério e consciente de suas responsabilidades, um País de trabalho e de progresso, de esperança e de bem-estar?

Esta é a hora para os portugueses se unirem, se quiserem salvar a Nação, ou para se dividirem mais ainda e enterrarem o futuro embrulhado na sarapilheira dos interesses partidários.

Tema para reflexão

Abril 18, 2011

Por Ives Gandra Martins

Tenho, nos últimos tempos, debruçado-me sobre a forma de indicação dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Durante os trabalhos constituintes, mantive inúmeros contactos com seu relator, senador Bernardo Cabral, e alguns com seu presidente, deputado Ulysses Guimarães, sobre ter participado de duas audiências públicas (Sistema Tributário e Ordem Econômica) em subcomissões presididas pelos deputados Francisco Dornelles e Antonio Delfim Netto, respectivamente, apresentando, a pedido de alguns constituintes, sugestões de textos.

Em um jantar de que participaram o senador Bernardo Cabral, o desembargador Odyr Porto, então presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, e o ministro Sydney Sanches, da Suprema Corte, no qual discutíamos  o perfil  que o Poder Judiciário deveria ter no novo texto, sugeri,   para a Suprema Corte, cuja importância pode ser definida na expressão do jusfilósofo inglês H.L. Hart  “The law is what the Court says it is”  (The concept of law),  que a escolha deveria recair sobre pessoas de notável saber  jurídico e reputação ilibada indicadas pelas diversas entidades representativas dos operadores do direito.  O conhecimento jurídico deveria ser não só  notório (reconhecimento da comunidade) mas notável (conhecimento  indiscutível).

Pela minha sugestão, o Conselho Federal da OAB indicaria o nome de seis consagrados juristas, o Ministério Público outros seis e os tribunais superiores mais seis (dois STF, dois STJ e dois TST), com o que o presidente  da República  receberia uma lista de 18 ilustres nomes do direito brasileiro para escolher um. Todas as  três instituições participariam, portanto,  da indicação. O presidente, por outro lado, entre 18 nomes,  escolheria aquele que, no seu entender, pudesse servir  melhor ao país. Por fim, o Senado Federal examinaria o candidato, não apenas protocolarmente mas em maior profundidade, por comissão especial  integrada por senadores que possuíssem a melhor formação jurídica  entre seus pares.

É certo que há sempre o risco potencial de uma escolha ser mais política do que técnica

Por outro lado, em minha sugestão, manter-se-ia o denominado “quinto constitucional”, ou seja, três dos 11 ministros viriam da advocacia e do Ministério Público, com alternância de vagas : ora haveria dois membros do MP e um da advocacia, ora dois ministros vindos da Advocacia e um do Ministério Público. De qualquer forma, para as vagas dos 11 ministros, as três instituições (Judiciário, Advocacia e MP) elaborariam suas listas sêxtuplas.

Acredito que minha proposta  ensejaria uma escolha mais democrática, mais técnica , com a participação do Legislativo, do Executivo, do Poder Judiciário, do MP e da Advocacia.

Nada obstante reconhecer o mérito e o valor dos 10 ministros da Suprema Corte. E mérito reconheço também no presidente Lula e  nos ministros Márcio Tomás Bastos e Tarso Genro, que souberam bem escolher tais julgadores. É certo que há sempre  o risco potencial de uma escolha mais política que técnica.Tendo participado de  três bancas examinadoras para concursos de magistratura (duas de juiz federal e uma de juiz estadual), sei quão desgastantes são tais exames. Examinei em torno de 6 mil candidatos para escolha de 40 magistrados federais e 57 estaduais. Para a escolha de magistrados de 2ª. e 3ª. instâncias, os critérios também são rígidos e variados, assegurando-se uma participação maior da comunidade jurídica.

Por que para a mais alta Corte não há qualquer critério, na nossa Constituição, a não ser o subjetivo, definido por um homem só? Esta proposta está sendo examinada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo, que poderá apresentar um anteprojeto à Constituição sobre a matéria.

Como o Brasil é hoje dirigido por um novo presidente e iniciará um ciclo de reformas estruturais, a  sugestão  que apresentei em 1988 poderia novamente ser examinada pelo futuro Parlamento, visto que estaríamos ofertando melhores elementos técnicos e de participação democrática  para que o presidente  pudesse fazer suas indicações.

Inventário de inutilidades em dia de bruma e desamparo

Abril 18, 2011

Por Dalila Teles Veras

Fim de tarde de outono, fina garoa. a velha dama estaciona o automóvel à frente do seu local de trabalho, abre a porta e… um homem forte, cabeça baixa, saído do nada, boné a cobrir metade da cara, voz trêmula e gestos nervosos, ameaça: a chave, rápido, vou levar o carro, deixa também a bolsa…

 (Uma bolsa de couro, cor de vinho contendo documentos necessários ao dia a dia de qualquer cidadão, como carteira de identidade, carteira nacional de habilitação, certificado de propriedade de um veículo, cartão de crédito, duas folhas de cheques bancários, cartão do seguro saúde, uma nota de R$ 50,00 e algumas “inutilidades”, como uma agenda moleskine 2011, devidamente preenchida com endereços, datas de aniversários em vermelho, compromissos e algumas idéias de projetos;  uma caderneta moleskine com  anotações para a memória ou, quem sabe, possíveis poemas; um micro-bloco de papel, com capa em cobre trabalhado e suporte para um micro-lápis, adquirido há anos na feirinha de antiguidades do bixiga;  um lenço de cambraia com a letra D em bordado madeira, adquirido no funchal; um mini-canivete suiço, adquirido em genebra, no qual havia embutido uma tesoura, uma lixa para unhas e uma lanterna; fotografias dos netos; chaves da porta de casa e da porta do trabalho; um celular com a bateria descarregada)

Igualmente trêmula, a velha dama pede calma, entrega a chave e a bolsa. o homem de olhos pregados no chão: – tudo certo, fica com deus (!!!). segundos depois, atônita, vê seu velho renault em disparada, na contra-mão, desaparecer ladeira acima. O homem forte e nervoso levou seu carro, sua bolsa, seus livros, dois quadros emoldurados com xilogravuras do jerônimo, deixando-a… “com deus”… a sensação de nudez e desamparo podia ser visualizada na densa bruma que repentinamente encobriu o dia.

O desejo de reaver as inutilidades, apenas elas, vitais para o sustento cotidiano, atravessou a noite, flecha perdida a zunir na insônia que, renitente, insistiu em se instalar.