Por Cyro de Mattos
Em oito de dezembro deste ano completo cinqüenta anos de formado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Nessa estrada de ganhos e poucas perdas caminhei olhando para a direita e para a esquerda. Às vezes parei e olhei para trás. Como faço agora quando procuro achar no fumo do tempo aquele período de cinco anos em que cursei a faculdade, em Salvador de Bahia.
A fotografia que tenho em mãos está amarelecida. Registra a despedida de nossa turma ao professor Mário Barros, depois de encerrada a última aula de Direito Comercial. O ilustre professor mostra-se descontraído ao lado da sorridente aluna Marietinha. As moças Inessa, Lícia, Rute Bendochi, Isaurinha, Ebe e Lucy estão à direita do nosso simpático professor. Rapazes e moças mostram na expressão tranqüila de cada rosto que se sentem aliviados com o fim da jornada pelos campos universitários. Todos eles estão convencidos do dever cumprido como acadêmicos de direito. Vários desses colegas já se foram desse mundo. José Aguiar, Otávio Vilas-Boas, Artur Caria, Teopisto, Jair Sampaio, João Berbert, Davi, Ronald, Durval, Cid, Ildásio Tavares e Rute Pondé. Lembro de mais dois, Edvaldo, apelidado de Vadinho Turgulê, meu primo, e Seu Barbosa, um taxista sexagenário, o mais idoso da turma.
O mais jovem da turma é Antonio Luís. Parece pensativo, logo atrás do magrelo João Pedro, de temperamento irrequieto, um dos mais inteligentes da turma. Usava constantes óculos escuros. Mais na frente, Álvaro Perez, o filosofo existencialista, de sangue espanhol. Dizia-se que Rute Bendochi nutria lá suas fortes afeições pelo discípulo de Sartre. Bem na frente de todos, olha lá, o pequeno admirável Cícero Brito de Magalhães. Seria também meu colega de serviço militar, que prestamos no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), cujo quartel ficava em Água de Meninos. Raul Ferraz, o mais alto da turma, colocou a mão esquerda com os dedos abertos acima da cabeça do Vadinho. Ele está sorrindo de contente, certo de que a vítima, alheia à brincadeira, só irá descobri-la e revidar com lambança depois que a fotografia for revelada.
Com alguns desses colegas, eu venho me encontrando de cinco em cinco anos. Nós nos reunimos em Salvador, durante a missa que mandamos celebrar e, à noite, em um jantar de confraternização. Dylson Dória, Edvaldo Brito, Marcelo Gomes, Marcelo Santos, Adalberto, Raul Ferraz, Heráclio, Marcos Machado, Antonio Luís Calmon, Milton Marques, Inessa, Hébio Palmeira, Geraldo Vilaboim, Isaurinha, Lucy, Lauro Azevedo, Ilce e outros colegas. Nesse instante, entre alegrias e risos, tomamos conhecimento de que a poesia não é feita só com versos, mas de saudades e memórias.
Depois que me diplomei em Direito, eu nunca mais consegui encontrar alguns dos colegas. De uns tenho notícias vagas, Adeodato, Dermeval, Álvaro Menezes, Everaldo, Célia, José Gonzaga, Orlando, Archimedes, Eduardo e Lícia. De outros nem sei o que fazem atualmente: Mário Boa Vista, Thereza Adelaide, Luiz Cavalcanti, Walker, Tomás, Rolemberg, Afrânio, Marlene e Ebe. É bom ver agora nessa fotografia que a vida era águas impetuosas da qual fui parte. Essa despedida constante das pessoas e coisas que amamos. A cada novo amanhecer havia a passagem do que sou. Nos sonhos colhidos e desmanchados, ó querida Faculdade de Direito, é inevitável nessa hora dizer sobre a dispersão que o tempo faz, unindo e desunindo, dando e tomando.
Noto que João Ubaldo Ribeiro não está na fotografia. Das duas uma, está na cantina namorando com Beatriz, a moça mais bonita da faculdade, ou lá mesmo conta alguma história de sua gente de Itaparica ao crítico literário Davi Sales. João Ubaldo Ribeiro sempre andou de mãos dadas com a criação literária. Ao invés de advogado militante, preferiu ser autor de contos e romances como forma de leitura crítica da v ida.
Não se bebe duas vezes nas águas do rio do tempo. Desse rio que desce e nos leva guiados por uma deusa de olhos vendados. Com ela uma parte do mundo vem me arrastando com meus colegas para um remanso final em terra estrangeira, sossegado e remoto. Alegria e tristeza que significam agora na estrada que perdura há cinqüenta anos? De fato havia um juramento entre mim e os colegas, juntos nós todos ganharíamos pedaços da humanidade com o diploma da lei. Lembraríamos depois uma roseira lançada no torvelinho das águas sob a estrela da tarde. Nossos gestos ficariam espalhados na aventura da vida perfumando essa estrada com o hálito daquelas rosas.
E porque ainda estou aqui, e não sou jovem, ouso dizer, como no claro verso de um jardim, que continuo caminhando nessa estrada e olhando para a frente. Sou guardador da crença de novos nascimentos que me relacionem com o mundo. Vestido de tudo que me faça sobrar nas razões e sentimentos, ideias e intuições. Apesar de tudo, sei que procurando eu acho esses novos nascimentos. Neles há chuva e tudo mais que vem de Deus.