Arquivo de Outubro 2010

CONVITE: Lançamento Livros de António Freire

Outubro 20, 2010

Escritor português António Freire lança livros em São Paulo e Baixada Santista

Outubro 18, 2010

Depois de lançar o best seller “Diário de Bordo de Padre Vieira” (Ed. Portugália, esgotado), o escritor e navegador português António de Abreu Freire vem ao Brasil lançar mais dois livros sobre o padre cuja obra abalou a sociedade e as estruturas da época em que viveu (1608-1697).

O autor lança os livros pelas edições Afrontamento, de Lisboa: “Ação e Palavra – Vida e Obra do Padre António Vieira” (200pp) e “Padre António Vieira – História de um homem corajoso” (186 pp). Esta última publicação traz um interessante subtítulo em sua capa: “Contada aos jovens e lembrada ao povo”, marca da literatura de Freire, que escreve com pena leve, texto acessível e por isso mesmo, popular.

Ao tratar de temas aparentemente árduos, como a catequização dos indígenas e a pregação jesuítica no século 17, não se furta de ir às fontes primárias, pesquisando em profundidade não apenas os textos do padre, como de seus contemporâneos barrocos no Brasil e em Portugal.

Na abertura dos eventos, que acontecem nas cidades de São Paulo, Peruíbe e Santos, o ator Adilson Azevedo representa em pocket show o espetáculo “Sermão do Bom Ladrão”, de padre Vieira, adaptado e dirigido por Vera Amatti, que também participa de mesa-redonda sobre Padre Vieira e sua obra, junto com o autor António de Abreu Freire.

Para entrevistas e contatos pessoais, o autor estará em São Paulo entre os dias 3 e 10 de Novembro de 2010.

Ficha técnica:

Em São Paulo:

Local: Clube Português – Rua Turiaçu, 609 – Perdizes

Dia 4 de Novembro, às 19 horas

 

Em Peruíbe:

OAB – Casa do Advogado – Av. São João, 696 – Centro

Dia 5 de novembro, às 19horas

 

Em Santos:

Centro Cultural Português – Av Ana Costa, 290 – Canal 2.

Dia 9 de Novembro, às 19 horas.

 

Mais informações:

Vera Amatti: (11) 3205-3243/ 9662-7330 vamatti@gmail.com

Pedro César Batista (Peruíbe): (13) 3451 3015 / 9745 3693

Biblioteca do Clube Português: (11) 3663-5953

Centro Cultural Português (Áurea): (13) 2105-8585

Copa do Mundo e Dinheiro Público

Outubro 15, 2010

Por Ives Gandra Martins 

Como contribuinte em um País em que a saúde, a educação e serviços públicos essenciais deixam a desejar, sou contrário a que se desvie dinheiro público -ou seja , dos contribuintes-, para construção de elefantes brancos que serão utilizados para 3 ou 4 jogos da Copa de 2014. 

Todos nós temos consciência -aqueles que se preocupam pelas finanças públicas das entidades federativas do Brasil- que apesar de a carga tributária atingir a fantasmagórica cifra de 37% do PIB (entre tributos e penalidades, que constituem a obrigação tributária, nos termos do art. 113 do Código Tributário Nacional), sabem que grande parte dela é dirigida apenas para remuneração dos servidores públicos, que , em nível de vencimentos e aposentadorias , estão muito acima dos cidadãos do segmento privado, que, sem gozarem de estabilidade, sofrem para ganhar o pão nosso de cada dia. Veja-se o que foi dedicado no orçamento para o Bolsa Família, 12 bilhões de reais , que atende a 11 milhões de pessoas, enquanto aquilo que se oferece a menos de 1 milhão de servidores federais, chega a 183 bilhões de reais. E, apesar desta cifra, aumentos de até 56% estão sendo outorgados aos que deveriam servir à nação e , na verdade, se servem dela, sendo fartamente remunerados por nossos tributos.

Nada obstante, a carga tributária ser tão elevada, o investimento público para o desenvolvimento caiu 4 vezes , em relação ao período em que a carga situava-se em 24%, como informou Delfim Netto, em palestra que proferimos juntos. Hoje, 37% do PIB geram um investimento público de 1% ; antes, 24% geravam um investimento de 4% em relação ao mesmo PIB!!!

Todos nós temos plena consciência de que o SUS deixa a desejar, que o sistema de educação é sofrível, que a infraestrutura do País não comporta um desenvolvimento mais acelerado e que , se os governos gastassem menos em despesas de custeio e com a mão de obra oficial , poderíamos alcançar desenvolvimento econômico e social muito melhor.

Ora, com todas estas deficiências , desviar recursos públicos para construção de estádios, como ocorreu no Rio de Janeiro, com o Panamericano e a criação deste elefante branco, que é o Engenhão, representa, em verdade, desvio de dinheiro essencial para outras atividades públicas mais importantes.

Por outro lado, é do conhecimento geral que tanto a CBF como a FIFA e todo os seus patrocinadores têm recursos de sobra, aliás , bem utilizados “pro domo sua” pelos seus perpétuos dirigentes.

Parece-me fundamental – como a Folha de São Paulo realçou em um de seus editoriais – que a CBF, a FIFA, seus patrocinadores, que são aqueles que organizam as Copas, utilizem-se seus próprios recursos , sem tirar o dinheiro do pobre contribuinte, que paga muito e recebe serviços públicos de má qualidade.

Creio que um movimento nacional deve ser organizado, para que se preserve o dinheiro público destinando-o a funções relevantes do Estado e que o lazer , representado pelo esporte , seja financiado pelos que dirigem o futebol mundial e no Brasil.

Que os candidatos à presidência e os governadores de Estados não cedam à tentação de prometer com o chapéu alheio (dinheiro do contribuinte) auxílio para entidades que , todos sabemos, nadam em dinheiro. E que os prefeitos, que têm tão pouco do bolo tributário nacional, não desperdicem o escasso dinheiro público que possuem , na construção de novos estádios. Isto é tarefa das duas milionárias organizações do futebol internacional e brasileiro e não do Poder Público.

Os Rios da Minha Aldeia

Outubro 15, 2010

Por Dalila Teles Veras

Hoje eu vi um rio, um rio aqui na minha aldeia urbana, que nem sequer era belo e eu sequer sabia que existia. Um rio subterrâneo, como parecem ser todos os rios desta cidade cada vez mais fascinada por cimento.

A enorme cova, aberta em plena rua do centro da cidade, retardando ainda mais o seu já nervoso tráfego, não estava ali ontem. Ontem,  era apenas rua e asfalto. Mas, eis que, por ordem e força do progresso, em poucas horas, surge uma surpreendente boca escavada na terra e mostra aos passantes o rio a correr, indiferente à vida sobre ele a passar.

A escancarada boca, parece debochar da cidade que teve a pretensão de ignorar que ali havia um rio. Não seria este riso, breve mas preocupante mensagem, a lembrar das forças da natureza e de sua incontrolável fúria? Amanhã, no entanto, o rio voltará a ser asfalto e rua, existência invisível à espera das chuvas do próximo verão para então, natureza novamente contrariada, lembrar aos homens a sua existência.

Lembro de Caeiro, o desconcertante poeta pagão, que sabia da beleza e também da fúria dos rios, por isso mesmo sabia respeitá-los e louvá-los na sua poesia. Nas cidades, dizia, “a vida é mais pequena”. Nas cidades, continuava ele, “as grandes casas escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu”. Saberia o poeta, naquele começo do século passado, que um dia, “além do horizonte” os homens também esconderiam os rios?

Que outros secretos e líquidos caminhos correrão pela minha aldeia, pistas que meu olhar, empurrado pelas barreiras naturais da cidade a crescer, não é capaz de desvendar?

Que outros rios ocultará minha aldeia, em sua nada inocente idéia de progresso?

Pobres de nós que não conhecemos os rios de nossa aldeia . 

O Futuro da Cultura Luso-Brasileira

Outubro 15, 2010

Por Antonio Abreu Freire

Vai fazer 70 anos que um intelectual brasileiro tomou a iniciativa de reflectir sobre uma realidade que nesse tempo ainda não tinha comentadores encartados nos arraiais da cultura não oficial. A ideia foi do grande mestre da antropologia cultural, o pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987), apresentada no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco a 2 de Junho de 1940, numa palestra intitulada Uma Cultura Ameaçada: A Luso-Brasileira e desencadeou uma vaga de seguidores que exploraram durante anos o tema do futuro da cultura luso-brasileira. O texto foi incluído na segunda edição do livro O Mundo que o Português Criou (Lisboa, Livros do Brasil, s.d.) e reeditado em 1980 pelo Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, com prefácio do autor e vários anexos com comentários de Álvaro Lins, Manuel Anselmo, José Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda e Edson Nery da Fonseca.

A República Portuguesa, na sua versão Estado Novo, festejava então, em 1940, os 800 anos da nacionalidade portuguesa e os 300 anos da Restauração da monarquia, enaltecendo as diferenças que o povo português preservava orgulhosamente em relação ao resto do mundo, aplaudindo a autonomia e a especificidade do idioma e das culturas de língua portuguesa: uma questão de identidade que o regime evidenciava, festejando sem rancor antiquíssimos sucessos monárquicos. Tinha rebentado a segunda guerra mundial, provocada pela agressividade de países que apoiavam as suas ambições na idéia da superioridade genética de raças que pretendiam, com as suas outras virtudes diferenciadas, dominar a história do mundo, criando uma nova ordem política e uma nova civilização. O mundo que falava Português pelos quatro continentes rondava então os 80 milhões de habitantes, dos quais cerca de 65% eram analfabetos; havia no Brasil e em Portugal movimentos culturais e políticos de apoio às idéias expansionistas da Alemanha, Itália e Japão, mas o mundo de língua portuguesa não alimentava tão elevadas ambições nem pretendia impor ao mundo os seus parâmetros sociais e econômicos, muito menos uma hegemonia política. Portugal pretendia apenas ver reconhecido o seu domínio sobre as colônias africanas, domínio contestado pela Alemanha e cobiçado pela Inglaterra; o Brasil do período ditatorial de Getúlio Vargas, que aderira ao modernismo da década de 20, conhecia um período de progresso econômico sem precedentes e sonhava entrar na era da modernidade.

Passados 70 anos, Portugal está prestes a festejar 100 anos de República e os desafios são outros nesta nova era da globalização; são mais de 230 milhões as criaturas que se exprimem em português por quatro continentes e o domínio cultural é agora esmagadoramente brasileiro. Cerca de 90 milhões destes seres humanos que falam português e ocupam espaços estratégicos em três continentes e alguns enclaves em outro, vivem numa cidadania precária por iliteracia, ou seja: 40% dos humanos adultos que falam português no mundo são totalmente analfabetos. Daqui por 40 anos poderemos ser 500 milhões pelo mundo a falar português, mas as forças produtivas e políticas terão mudado substancialmente, dada a emergência dos países africanos de língua portuguesa que contarão com 100 milhões de habitantes e o grande desenvolvimento econômico e social do Brasil, uma das maiores e mais promissoras economias do mundo no século XXI.

É mais que oportuno colocarmos de novo a questão do futuro da cultura luso-brasileira, numa encruzilhada da história dos povos, quando se reconsideram e reavaliam valores culturais, sistemas financeiros, modelos de produtividade, projectos políticos e sociais, quando se reorganizam as igrejas e se reformulam definições da identidade e da cidadania, enfim quando na história das civilizações se chegou a um ponto de encontro onde a incerteza domina todos os sentimentos e todos os raciocínios lógicos e matemáticos. O grande desafio deste início de século é o da gestão das incertezas.

A questão que colocava Gilberto Freyre em 1940 era a da definição da identidade: que gentes são estas que contam a sua história e projectam os seus desejos em língua portuguesa, donde vêm e para onde vão. O guru de Apipucos entusiasmou-se com o convite do Estado Novo português para liderar uma investigação e propagar uma ideologia que resultou na criação de uma doutrina de carácter supra-nacional e original, o luso-tropicalismo. Num tempo de ideologias fascistas e integralistas, o criador da sociologia e da antropologia brasileira modernas encaminhou o debate para o campo de uma identidade baseada na estrutura e no poder da língua como factor de reconhecimento do outro como parceiro de vida, de desejos e de produção de bens, considerando as diferenças genéticas e religiosas como um factor positivo de inclusão e de construção de uma comunidade global. A miscigenação e o sincretismo eram mostrados ao mundo inteiro como um factor positivo na criação de um mundo novo, obra de um povo expansionista por vocação, que encontrava a sua identidade na assimilação e superação das diferenças raciais, linguísticas, culturais, religiosas e até socioeconômicas. Era certamente uma visão romântica da realidade, mas não deixava de ser também uma reflexão poderosa e muito racional (não tivesse ela o selo do idealismo de Hegel e de Holderlin, reminiscências da famosa Escola de Direito do Recife, dominada pelo germanismo de Tobias Barreto e de Sílvio Romero), que influenciou profundamente os intelectuais brasileiros das décadas de 50 a 70. A guerra resolveu, pela força das armas, a sorte e o destino dos regimes fascistas e permitiu a emergência de outras ideologias nacionalistas que pretendiam evidenciar valores que não fossem dominantes nem exclusivos de uma raça, como os valores de classe e o das novas ideologias populares.

No século XVII o padre António Vieira, num momento particularmente difícil para a soberania do reino de Portugal e das suas conquistas, definiu à maneira do seu tempo uma identidade baseada nas virtudes ancestrais dos portugueses para desenhar o projecto de um Quinto Império onde se reuniriam todas as raças e todos os projectos dos homens, naquilo que seria o reino de Cristo Consumado na terra. Seria uma era de riqueza e prosperidade, uma Feira Universal onde se encontrariam e se distribuiriam as produções dos homens, das quais ninguém seria excluído. Nesse Império teria lugar uma nova identidade, a de homens livres e reencontrados depois de perdidos, com o advento de uma nova era de prosperidade, regida e apregoada em português. O discurso de Vieira era patriótico e profético; ele acreditava que a história de Portugal e de todos aqueles que faziam parte das conquistas do reino estava anunciada nos textos dos profetas e que os portugueses tinham a responsabilidade e o dever de realizar tais profecias. Não era isso que ele enxergava na política do reino, o que muito o amargurava. Mesmo se a realidade parecia contradizer os seus projectos e os desígnios dos profetas, mesmo se os seus colegas de religião não enxergavam o alcance das suas idéias, o jesuíta nunca desistiu, nunca abdicou da sua postura de profeta do Quinto Império, deixando em herança para a posteridade dos seus leitores a esperança e a coragem como fundamentos da identidade dos povos de língua portuguesa.

Neste nosso tempo de incerteza e de fragilidade, é necessária uma vasta reflexão sobre o futuro das culturas que se exprimem no idioma português, suficientemente abrangente e lúcida para considerar os principais factores que contribuem para a mudança que desafia a nossa imaginação. É necessário criar pontos de encontro de todos aqueles que se interessam pelo futuro de uma história comum a muitas nações, cujo factor de união é a língua e cuja referência mais significativa neste momento é o potencial criativo do Brasil e de Portugal, dois países que têm o ónus e o privilégio de liderar a caminhada para uma identidade comum. Não existem mais, nestes dois países líderes, ideologias nacionalistas, nem de classe; também não existe competição por qualquer forma de liderança política sobre os demais. O futuro dos países mais evoluídos, em maior crescimento e protegidos por alianças e uniões económicas, não deixa de estar rodeado de incertezas; o futuro dos países mais vulneráveis e com uma história recente de atropelos e de indefinições, nos limites do colapso, sugere a tragédia. Neste momento, a grande maioria dos cidadãos de seis dos oito países que se identificam pela língua portuguesa, vivem na insegurança e no desespero, abaixo do nível da pobreza. Portugal e Brasil ainda não são modelos de um progresso sustentado e equilibrado, não assumiram ainda uma posição de relevo nos sectores mais críticos do equilíbrio mundial, mas têm o dever e a responsabilidade de liderar uma acção de tomada de consciência e de criação de auto-estima, fabricando as alfaias e os mecanismos para edificar os perfis éticos e produtivos adaptados aos novos desafios do século, para além das fronteiras raciais e geográficas.

Portugal conta ainda com 2 milhões de analfabetos adultos (entre primários e funcionais), ou seja 20% da sua população; o Brasil conta com 40% da sua população sofrendo do mesmo mal, ou sejam 80 milhões de habitantes (cerca de 35 milhões de analfabetos primários e 45 milhões de analfabetos funcionais): os países africanos de língua portuguesa, com excepção de Cabo Verde, incluindo Timor leste, ultrapassam os 70% de analfabetos primários e funcionais, ou sejam 30 milhões de seres humanos. Isto significa que num universo de 230 milhões de habitantes, 110 milhões, quase metade, estão ou excluídos da cidadania ou partilham apenas uma cidadania precária. Com esta realidade não é possível imaginar que os povos de língua portuguesa se aproximem dos outros países que lideram a história mundial.

O continente africano é o mais vulnerável. Em 2050, quando os países africanos de língua portuguesa totalizarem cerca de 100 milhões de habitantes, metade da população sofrerá as consequências das doenças que neste momento estão sem controle, como a sida e a malária e esses cidadãos não estarão aptos para uma produtividade que garanta a sua sobrevivência. O regime político que vigora neste momento não garante minimamente os valores éticos que regem as democracias: reina a corrupção, o enriquecimento desmedido dos responsáveis pela “governação”, a exploração desenfreada dos desprotegidos pelos privilegiados, a injustiça e a exclusão. As cidades crescem num ambiente caótico e desordenado, num cenário de confusão e violência. As riquezas naturais são sistematicamente esbanjadas, com a conivência dos parceiros externos que fecham os olhos às injustiças mais flagrantes e aos mais evidentes atropelos à ética.

Portugal, a matriz histórica da língua, terá em 2050 a mesma população que tem hoje; a média etária da população terá aumentado, o número dos trabalhadores produtivos terá diminuído. O clima político que se vive neste momento, resultado de 35 anos de confusão e desperdício, terá certamente mudado radicalmente, pela força emergente de novas mentes esclarecidas com um novo perfil ético e produtivo, que não tardarão a impor-se à confusão e à mediocridade generalizadas que reinam entre a actual classe política. Esta é uma perspectiva algo optimista, mas ela é real e fundamenta-se nos valores de uma juventude que aguarda o momento oportuno para se manifestar e impor. O futuro da Europa, de cuja protecção Portugal beneficia com pouco mérito, é incerto e confuso, um projecto em construção que garante aos cidadãos comunitários uma liberdade de circulação e uma igualdade de direitos, mas apenas por contrato a termo, porque a Europa ainda não tem constituição nem identidade. O continente africano, que hoje tem a mesma população que a União Europeia, cerca de 435 milhões de habitantes, terá em 2050 acima de 1.500 milhões de habitantes, quase 4 vezes mais. Apenas os países do norte de África, a norte do Sahara, beneficiarão de um desenvolvimento econômico capaz de os manter parceiros da Europa e dos outros países desenvolvidos do mundo. O resto do continente africano será totalmente dependente da ajuda externa e o passado colonizador da Europa em África confere aos europeus uma responsabilidade moral pelo colapso da África sub-sahariana. Se hoje os africanos desesperados tentam invadir a Europa atravessando em frágeis embarcações o pequeno pedaço de mar que os separa da felicidade, em 2050 cada casal europeu terá em redor da sua casa 8 africanos a espreitar pelas portas, janelas e frestas, procurando buraco por onde entrar.

O Brasil é hoje uma das economias mais promissoras do mundo e um dos países mais ricos em recursos naturais. É um dos poucos países do mundo que pode consumir tudo o que produz e produzir tudo o que necessita para consumir e ainda sobrará muita produção e muito espaço disponível quando a população duplicar. Com um investimento sustentado em educação das massas o Brasil poderá tornar-se, nos próximos 40 anos, uma das maiores potências mundiais. Terá que resolver de maneira contundente e algo radical grandes problemas internos, que desafiam a imaginação, como sejam um novo ordenamento urbano das grandes cidades, cujas periferias, pelo seu crescimento desordenado e selvagem, se tornaram inaptas para a vida humana – isso significa modificar o habitat urbano de mais de 60 milhões de habitantes; terá que planificar e proteger a ocupação do espaço agrícola e florestal, procurar e desenvolver novas fontes energéticas, criar mecanismos de integração social das populações menos produtivas. Nos últimos 50 anos o Brasil foi o país do mundo que mais investiu em educação. Entre 1960 e os nossos dias a população brasileira triplicou e o número de analfabetos adultos primários é hoje aproximadamente o mesmo, numericamente, de há 50 anos: uns 35 milhões. Nenhum país do mundo, em condições de crescimento semelhantes ao Brasil, nem em melhores condições, conseguiu tal proeza.

Com todos os atropelos ao bom senso que nos nossos dias afectam a imagem do país, como a violência nas grandes cidades, a distância que separa os privilegiados dos carenciados, o desperdício das riquezas agrícolas e mineiras, o povo brasileiro é hoje, aos olhos do mundo, uma sociedade credível, considerada capaz de resolver por ela mesma os seus problemas internos, enfrentar todos os desafios e ultrapassar todos os obstáculos, criando os seus próprios meios para atingir os seus objectivos.

No panorama das culturas que no mundo se expressam em língua portuguesa, o Brasil é o país que alcançou o estatuto de liderança incontestável no processo de transformação que se anuncia para o século XXI. Esta liderança começa pela educação das massas, pela formação de cidadãos com um novo perfil ético e produtivo, pela transformação dos espaços urbanos degradados, pelo ordenamento do território, pelo equilíbrio ecológico, pela criação de condições para o crescimento controlado de uma população sadia, o que supõe uma forte componente de educação para a saúde. As desigualdades criadas e mantidas ao longo de décadas e até séculos, terão que ser resolvidas através de programas radicais e gravosos para uma parte da população que até agora viveu do outro lado do estigma da pobreza e da exclusão.

Portugal desperdiçou os últimos 50 anos da sua história com 15 anos de uma guerra colonial absurda e com 35 anos de desperdícios provocados por escolhas políticas e sociais disparatadas. Entre 1958 e 1978 mais de 2 milhões de portugueses, a mão-de-obra mais produtiva do país, emigrou para outros países da Europa, onde contribuiu para o enriquecimento de outras comunidades. Desde o final do século XIX e nos primeiros 30 anos do século XX, outros tantos portugueses tinham procurado fortuna no continente americano, o destino da grande maioria dos que apostavam no novo mundo para encontrar uma nova razão de viver. A República, em 1910 e a Revolução dos militares em 1974 surgiram como remédios a crises socioeconômicas e foram novidades políticas recebidas com euforia e satisfação, mas nem uma nem outra cumpriram os ideais que apregoavam. Depois do 25 de Abril aumentou-se o acesso à educação, mas diminuiu-se drasticamente a qualidade da mesma; o país equipou-se com infra-estruturas de transporte, comunicações e serviços, graças à ajuda da Comunidade, mas pelas auto-estradas da nossa vaidade circulam analfabetos na contra-mão, a quantidade de aparelhos telefônicos fixos e celulares, uma das maiores do mundo em percentagem de habitantes, não favorece a produtividade e os serviços prestados à população são os piores de toda a Europa. Portugal vai festejar no próximo ano 100 anos de República, sendo o país europeu com maiores discrepâncias entre ricos e pobres. Dos 10 milhões de portugueses, 2 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e não tem solução à vista para remediar a situação. Situado na cauda da Europa, Portugal não é apenas o país mais pobre da Comunidade, é também aquele que menos cresce e o que menos perspectivas tem de poder desenvolver-se, sendo o que possui o mais baixo nível de educação das massas e consequentemente o de menor rendimento produtivo. Neste momento, o mundo que fala português não pode contar com Portugal para defender os valores ancestrais de uma comunidade de povos que se formou ao longo de cinco séculos de história. No ano em que festejamos o centenário da República, temos que assumir na realidade 60 anos de ditaduras, 15 anos de guerras civis e 25 anos de trapalhadas. Os ideais republicanos até agora têm ficado adiados. O que podemos verdadeiramente comemorar são os rosários de ideais adiados.

Qual poderá ser o papel de Portugal, neste momento de crise e de indefinições, na afirmação do poder da língua portuguesa pelo mundo, quando o crescimento da população que fala português é “imparável” e a liderança do Brasil no processo de desenvolvimento econômico e no poder de criatividade é incontestável? Como pode um país em vias de envelhecimento, periférico na sua área de intervenção sócio-política e dependente das iniciativas dos parceiros de comunidade no que respeita ao seu progresso sócio-económico, colaborar na expansão cultural do fenómeno imparável que esse mesmo país criou quando se lançou pelos oceanos do mundo à conquista de terras e de povos, já lá vão mais de 500 anos?

Os portugueses criaram esta terceira maior língua comercial do mundo e teceram o enredo das culturas que a adoptaram e desenvolveram como instrumento de comunicação e de criatividade. Foram as naus da Índia, as do comércio das especiarias e das pedras preciosas que fizeram com que os portugueses sonhassem com um império, idéia que saiu da mente irrequieta de Afonso de Albuquerque em 1510; mas foi do trabalho humilde dos lavradores que nasceu o verdadeiro império, dos que plantaram cana de açúcar no Brasil, que criaram currais de gado e dos que depois caminharam pelos sertões delimitando fronteiras, dos bandeirantes e dos sertanistas que cavaram minas à procura de ouro, diamantes e pedras. Quando pelos anos de 1659 o padre António Vieira sonhava com os alicerces do Vº Império, já a Índia era uma saudade. Foram precisos 160 anos para pacificar e unificar a colônia brasileira, que optava pela sua independência outros tantos anos depois. Duzentos anos depois das naus da Índia, Portugal recolhia os benefícios do ouro do Brasil, o que não enriqueceu o povo nem criou um Império. Se ainda fosse vivo, Vieira teria pregado outro sermão do mesmo teor do da segunda oitava da Páscoa de 1656, pregado na igreja matriz do Pará, quando lembrava, mais decepcionado e infeliz do que os sertanistas que tinham ido ao rio dos Pacajás, que a verdadeira riqueza não era a das minas, mas a que estava ao decima de terra, a dos seres humanos; era com os homens e a sua imaginação que se iria construir o Vº Império, não com o ouro e as pedras das minas. Os missionários seguiram as naus do comércio, que serviu de chamariz para propagar pelo mundo a fé cristã e as virtudes ancestrais dos portugueses, aquelas sobre as quais se poderia alicerçar o império do futuro, o reino de Cristo consumado, a feira universal, um mundo novo feito de riqueza e de felicidade, de partilha e de liberdade.

A feira universal, profetizada por Vieira em 1674, existe: é o mundo da globalização de que tomámos consciência três séculos mais tarde, nos anos 80 do século passado. É um mundo feito de riqueza, ainda que só alguns possam até agora beneficiar dela; é um mundo de partilha, já que o comércio livre não exclui ninguém da praça, ainda que só alguns encontrem o caminho da grande feira. A primeira condição para que a língua portuguesa se afirme como o instrumento de comunicação de 500 milhões de pessoas é a sua unificação ortográfica e nesse ponto a adesão de Portugal ao acordo ortográfico e a sua realização prática é um passo fundamental para a afirmação deste poder. As últimas tentativas passadas não tiveram sucesso por falta de vontade política; neste momento, ou se concretiza o acordo ou enveredamos irremediavelmente pela opção de duas ou mais línguas de raiz portuguesa.

Cresce actualmente, a um ritmo assustador, a opção política de uma união ibérica, como solução para a pobreza e a incapacidade de Portugal em acompanhar o ritmo de crescimento econômico do resto da Europa. A solução apresentada é enganadora, pois integrado numa federação de autonomias ibéricas, se o povo continuar com o mesmo nível de instrução e com a mesma capacidade produtiva, continuará tão distante do ritmo europeu quanto antes. Com a adesão de Portugal a uma federação de autonomias ibéricas, todas as regiões autônomas de Espanha ganhariam mais autonomia e por isso mesmo os partidários da idéia recebem o apoio de todas as comunidades espanholas. Mas Portugal apenas teria a perder na sua autonomia, em troca de um nível repentinamente mais elevado de condições de vida: melhores salários, melhor segurança social, maior apoio aos carenciados. Porém, o caminho para o progresso passa pela educação, pelo esforço do aperfeiçoamento pessoal e colectivo, pela criação de um perfil ético e produtivo adequado aos tempos modernos, esforço que os portugueses não fizeram nos últimos 35 anos. Antes do 25 de Abril desculpavam-se pelos vexames da ditadura, mas desde então não têm mais desculpas. Os portugueses têm o que merecem, e não podem deitar culpas a ninguém. Não será com a união ibérica, lembrando que essa foi por várias vezes na história uma opção procurada, inclusive pelo próprio padre António Vieira em 1650, que Portugal entrará na era da felicidade. Um acordo linguístico galaico-português, como propõem os adversários do acordo ortográfico, não faria da língua portuguesa um idioma mais poderoso na Comunidade Européia nem traria qualquer benefício cultural para os portugueses. Mas a aplicação prática do acordo, através da imprensa escrita, das editoras e dos programas escolares, contribuiria de imediato para o fortalecimento da língua à escala mundial. Como primeiro responsável pela língua a um plano histórico, o exemplo de Portugal só peca pelo atraso e as hesitações apenas traduzem a incapacidade de enfrentar a realidade: um país periférico à sua própria história.

São cada vez mais numerosos os jovens portugueses formados nas universidades européias que escolhem como opção ir trabalhar para outros países de língua portuguesa. Uma nova geração de emigrantes portugueses procura no Brasil e em África novos espaços para se realizarem, alguns deles ao serviço de empresas tecnologicamente avançadas, outros amparados por ONG’s que dedicam aos países africanos de língua portuguesa uma parte considerável dos seus recursos. A acção destas ONG’s em África está a crescer a um ritmo muito grande, gerindo recursos nos diversos sectores da educação e da assistência social com uma eficácia muito superior à dos recursos dos governos. Dados da ONU revelam que o crescimento das aplicações dos recursos das ONG’s na África subsaariana é superior a 15% ao ano, e que dentro de 10 anos estes recursos serão superiores aos dos governos. Este é um espaço privilegiado para a intervenção de Portugal e do Brasil em África, nos sectores delicados e estratégicos da educação e da saúde; os dois países têm uma ligação muito especial a África, uma ligação histórica e genética. Promovendo a educação e a saúde em África, Portugal e Brasil estão a promover o seu próprio desenvolvimento, fortalecendo os laços que já os ligam genética e culturalmente. É necessário que os africanos encontrem espaço e razões para viver em África, porque a Europa não os pode conter nem o Brasil os pode acolher. Portugal tem neste momento 60.000 jovens licenciados no desemprego, sem qualquer esperança de poderem utilizar os seus conhecimentos para o progresso do país. Certamente que apenas uma percentagem desses jovens considera a hipótese de pular as fronteiras do comodismo e aceitar o mundo como cenário de vida. A preparação de milhares desses jovens como cooperantes nos países de língua portuguesa em vias de desenvolvimento seria o melhor e mais eficiente dos investimentos em tempo de crise. Esta proposta é certamente recebida pelos políticos e ilustres da república portuguesa como ridícula, pois nem sequer há coragem e visão para preparar uma pequena fatia dos 25.000 professores desempregados para alfabetizar os dois milhões de analfabetos adultos do país. Mas é em tempo de crise (como em tempo de guerra) que necessitamos de soluções radicais e de utilizar os recursos disponíveis e até empenhando os do futuro, para enfrentar os desafios do crescimento. É também em tempo de crise que muitas vezes, aquelas realidades tristes que são evidentes para os simples e humildes, são finalmente enxergadas pelas mentes doutas e esclarecidas. E esta proposta é não somente uma proposta de futuro como sobretudo um investimento estratégico no perfil ético e produtivo da sociedade portuguesa.

O futuro da língua portuguesa no mundo está ligado ao da cultura luso-brasileira, ao da capacidade de resposta aos desafios enormes que se colocam à escala de três continentes, à criação de um novo perfil ético e produtivo capaz de encontrar soluções inovadoras para remover os obstáculos ao progresso e às legítimas aspirações dos cidadãos. O movimento terá que levar, na mesma enxurrada criativa, à transformação dos subúrbios urbanos das grandes cidades, à educação das massas através de uma escola cidadã, à educação para a saúde, à integração das comunidades menos produtivas, ao combate à corrupção e à exploração dos desfavorecidos, à defesa dos valores ecológicos, ambientais e climáticos, à poupança dos recursos naturais perecíveis, à procura de fontes alternativas de energia. Nada disto é possível sem um intercâmbio de conhecimentos e uma partilha de tecnologias, fazendo de todo o espaço da língua portuguesa aquela feira universal do sermão de Vieira de 1674, dedicado à rainha Santa Isabel, na capital do mundo de então.

A cultura luso-brasileira continua ameaçada, mas tem condições e recursos para se afirmar como uma das incubadoras de criatividade mais eficientes e promissoras do mundo, enfrentando problemas que são os maiores que hoje se colocam à imaginação dos cidadãos e podendo servir de exemplo e de modelo a outras culturas. Resolvendo os seus próprios problemas, os povos de língua portuguesa apresentam soluções para os problemas do mundo. Acabar com a iliteracia das massas, transformar as periferias urbanas em espaços habitáveis e socialmente equilibrados, criar condições para que os cidadãos possam encontrar nos seus espaços naturais de vida as condições da sua sobrevivência e da sua felicidade. Fazer com que os africanos não tenham mais razões para fugir de África, com que os portugueses não tenham mais necessidade de emigrar para outros países, que os brasileiros das grandes cidades não tenham mais medo da bala perdida, são desafios suficientes para projectos do novo milénio, à medida das virtudes daqueles que, em outros tempos, criaram o mundo de língua portuguesa, sem outros recursos que os da sua imaginação e uma invejável coragem. Como dizia Vieira, os portugueses sempre tiveram pouca terra para nascer e o mundo inteiro para crescer e morrer. Mas depois que eles fizeram do mundo inteiro o terreiro das suas paixões, as leivas dos seus arados e espalharam por esse mundo os seus genes e a sua língua, o desafio dos nossos dias consiste em fazer com que cada qual no seu espaço reconstrua a sua vida, transformando as sociedades degradadas em sociedades ordenadas e o mundo que é no mundo que há-de ser: um espaço onde todos assumam a sua responsabilidade de contribuir para o bem comum e onde cada qual, ao seu jeito e feitio, beneficie dos bens criados por todos os demais. É a isto que se chama cidadania. Como dizia o trapista da cabana de Brasília, o inimitável Agostinho da Silva: Se fizeres, és; se não fazes, serias. Então, a solução é simples: fazer.

Os Contos Comoventes de “Trapiá”

Outubro 15, 2010

 Por Cyro de Mattos

Depois que João Guimarães Rosa colocou o sertão nas palavras com canto e plumagem, o regionalismo de nossa ficção sofreu um impacto e ficou no impasse. Continuar a experiência do autor de Sagarana (1946) seria impossível porque bem pessoal. Em sua manifestação transgressora participa da subversão do léxico e sintaxe, inventa a linguagem fora dos cânones, modifica a estrutura. Prosseguir na linha regionalista tradicional na qual o enfoque do típico e do característico, inclusive da fala, tendo por fundo uma região refletida no conteúdo, conferindo uma nota especial, seria repetir padrões do que já estava exaurido. A opção pelo regionalismo nordestino de 30 seria incorrer na superioridade do documental compromissado com a realidade imediata sobre o subjetivo sem acrescentar nada de especial em nossa novelística.

Trapiá (1961), contos, é a estréia do cearense Caio Porfírio Carneiro, que publicaria posteriormente mais de uma dezena de livros no gênero e seria compendiado como um dos bons valores da moderna contística brasileira.. A leitura apressada do livro pode dar equivocada impressão de que se trata de contos regionais no sentido menor, pelo fato de que a matéria narrativa estaria presa a um contexto cultural específico que se propõe a retratar e de onde vai haurir a sua substância. São histórias da terra áspera, calcinada, coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida.

A impressão de que os contos de “Trapiá” são regionais afigura-se como tal dado que a matéria narrativa incorpora ainda no texto termos e expressões típicas como “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”, “cumaru”, “canarana”, “mofumbó”, “varejão”, “pega-pinto”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”, “baticun’, “capionga”, “cansansão”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” e “pitombeira”. Embora não ocorra o abuso do uso desses termos e expressões típicas na narrativa concisa, não se repetem em cada história quando incorporados ao discurso coeso. Isso já demonstra uma tomada de consciência crítica do contista para evitar a presença do repetitivo, enfadonho, que em geral ocorre no texto de natureza regionalista.

Não importa ao contista de Trapiá a transposição da linguagem para o campo literário tal qual ela é. Nem importa retratar a ambiência onde se passa a história como se fosse fotografá-la nos mínimos detalhes. Passa longe o dado sociológico transformado em matéria literária, realidade estética, visando prevalecer o documento sobre o subjetivo. Embora enraizado em sua região de origem, fazendo dela muitas vezes a matéria prima de sua criação literária, Caio Porfírio Carneiro nos contos de Trapiá ultrapassa os limites do regionalismo dos anos 30/40, para engajar-se em uma literatura que tem como tema o ser humano tocado de suas verdades essenciais: tristezas e dores.

A economia dos meios nos contos de Trapiá salta aos olhos como uma maneira bem particular da expressão, a se mostrar com precisão na arte implícita de forjar a história no que pretende contar. Há uma nota especial disso desde a fala dos personagens, passando pela ação que os movimenta através de sua psicologia, até as observaçõese e constatações que fazem dando uma idéia do lugar onde acontece a intriga. Tanto no fundo como na forma há sempre o uso dos meios de expressão com síntese, equilíbrio, intensidade do verbo, “vazios narrativos”, tudo isso manipulado com facilidade que torna o narrador possuidor de uma dicção muito própria no corpo do moderno conto brasileiro.

Para não cair no tempo lógico seqüenciado da narrativa, o contista recorre ao contraponto, fazendo que os quadros vividos pelos personagens exibam a história com um interesse eficaz capaz de prender o leitor do princípio ao fim. Preenche-se de interesse o drama na medida em que os personagens agem. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso.. No conto “Milho Empendoado”, por exemplo, o coronel revela à mulher apenas no desfecho que não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar as galinhas. Em “O Pato do Lilico”, o pai não acredita que o menino tenha recebido o brinquedo de presente do homem na cidade. Em sua rusticidade estúpida, pensa revoltado que o menino havia roubado o brinquedo. De nada adiantava o choro e a insistência do filho querendo mostrar a inocência. No final, bruscamente, jogou o pato no chão e pisou com raiva, enquanto a mulher lá da cozinha dizia para o filho se calar, não fazer isso outra vez, Nosso Senhor castiga. Em “O Gavião”, a raiva que o menino tem da ave que lhe roubou o canário de estimação, insistindo para que o pai a matasse, transforma-se em admiração quando entra em contato direto com ela, percebendo sua maneira de reinar na natureza com coragem e beleza. Comove o final quando a ave é abatida pelo pai e o menino sente. Em “Candeias”, o vadio menino Rafael implica a todo instante com a Velha Candoca, mandando os companheiros sujar os panos do coradouro, chamando-a de “velha cachimbeira”. Quando retiraram do açude o menino morto, “ na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, a velha sente água nos olhos. Nunca ouviria mais a provocação: Velha cachimbeira!

Nas onze histórias de Trapiá, a conservar alguns elementos clássicos do realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura.

O estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um pensar sobre a complexidade do mistério da existência. Em “Macambira”, o velho Firmo com o olhar perdido no poente, conversa em silêncio ao perscrutar o tempo, o vento e sua poeira. Vê a criação se esvaindo sem a ração, e ele resistindo à seca, à solidão, não atendendo ao pedido dos filhos em São Paulo para deixar suas terras, porque um homem não se dobra ao vazio de tudo, nem quando perde a mulher.

Nestes contos de Trapiá não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto.. Não chega a forçar em algum momento as emoções do seu fundo a sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência..

Assim, no eixo desses contos bem escritos de Trapiá vemos a solidariedade inesperada latejar sentimentos e nervos em “Mata-Pasto”,“Come Gato”; o absurdo da incompreensão em “O Pato do Lilico”; a astúcia do coronel em “Milho Empendoado”; a afeição intensa da Velha Candoca em “Candeias”; a vontade feita dureza na solidão de velho Firmo em “Ventania” e o ódio revertido em amor pela ave de rapina em “O Gavião”.

Não é preciso ser crítico arguto para saber que nos onze contos enfeixados no livro de estréia de Caio Porfírio Carneiro aconteceu o nascimento de um contista moderno e dos bons. Possuidor de dicção simples, mensagem forte em sua grandeza humana. Dono do chão literário que pisa, exprimindo sentimento do mundo entre o drama e a ternura. Percebe-se facilmente em qualquer dessas histórias de Trapiá a união harmoniosa entre o escritor e o ficcionista.

O estilo do contista flui com naturalidade, sua dicção desenvolve a história com uma capacidade particular que seduz e flagra a vida num instante que nem sempre se esgota em si mesmo. Continua na mente do leitor. O autor de Trapiá tem também uma capacidade incrível de colocar bem os diálogos no tempo necessário e, quando toca na alma humana sob o peso da vida, nunca extrapola das notações agudas. Sempre preenche o texto com sentimentos verdadeiros, penetrantes de luz, a evitar que se percam no anonimato e esquecimento.

Referências Bibliográficas

CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e Editora, São Paulo, 2003.
GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.