Por Antonio Abreu Freire
Um século separa estes dois gênios da língua e da saga portuguesa, mas foi um século de grandes e profundas mudanças na nossa história. Camões viveu no tempo da euforia da Índia e deixou-se embriagar pela idéia de um império que Afonso de Albuquerque tinha sonhado para Portugal. Depois de ter cantado a epopéia de uma raça de homens diferente das do resto do mundo, o poeta morreu na miséria, com lucidez suficiente para ver o reino despedaçado. Não foi no desastre de Alcácer-Quibir que se perdeu o reino, mas sim na ruinosa administração de D. João III ao longo de 36 anos e durante os anos que se seguiram à sua morte em 1557, quando a intolerância e a obsessão religiosa tomaram conta das mentalidades. Camões deixou em herança um poema que ficou como referência dos desejos mais profundos de uma nação: sonhos de vitórias, de riqueza e de poder de um povo pobre que nunca aceitou a sua fraqueza e sempre se iludiu com o seu destino.
O “ilustre peito lusitano” era o povo Lusíada, vocábulo criado pelo seu contemporâneo o grande humanista André de Resende (o autor do De Antiquitatibus Lusitaniae) para definir os descendentes de uma antiquíssima raça lusitana, referência ancestral de todos os heróis e de todos os artífices da epopéia marítima portuguesa. Porém, a utopia não tinha consistência, porque a tal raça lusitana nunca existiu. O povo do reino de Portugal sempre foi constituído por uma mescla étnica das mais diversas origens e até o nosso primeiro rei era um exemplo desta mistura circunstancial, filho de um imigrante francês e de uma bastarda galega. A Lusitânia foi um nome dado artificialmente a uma região administrativa do império romano e não contemplava qualquer unidade racial, nem linguística nem cultural. O nome escolhido para este pedaço de império nunca passou de uma fantasia poética e a história de um Luso parente do deus Baco apenas contemplava, talvez, o gosto característico dos ibéricos pelo vinho tinto e pelos prazeres mais sensuais da vida.
No poema de Camões a raça lusitana, predestinada por Deus para grandes feitos e glórias ímpares, era uma etnia diferenciada, autóctone e cristã; judeus, muçulmanos, africanos, povos nómadas atrevidos originários da Europa profunda e todos os seus descendentes que no termo de imensas caminhadas assentaram arraiais na península Ibérica, ficaram excluídos de tão preciosa tribo, apesar de terem sido os marinheiros, os soldados, os navegantes, os pilotos, os armadores e os comerciantes das naus da Índia. Os Lusíadas sempre foram um poema à glória dos feitos assombrosos e reais de gente destemida que os imaginou e realizou, mas esses feitos foram atribuídos a uma raça fictícia, para glória dos escolhidos, dos privilegiados e para exclusão dos outros.
Quando o padre António Vieira começou a pregar os seus primeiros sermões, nas igrejas de Salvador da Bahia, tinham-se passado 60 anos depois da publicação d’Os Lusíadas e da morte de André de Resende. Do império sonhado apenas sobravam retalhos. O jesuíta admirava Camões e teceu-lhe ao longo da vida numerosos elogios, partilhando com o poeta o patriotismo e a idéia do destino glorioso do reino. Também partilhava com o bardo a admiração pelo romantismo da mitologia clássica e não deixou de incluir nos seus Sermões algumas alusões aos velhos mitos que colavam uma identidade singular aos povos variados da península. Mas no seu tempo de jovem pregador reinava em Portugal uma dinastia estrangeira e o comércio da Índia viajava no bojo de naus cujo rumo não era Lisboa; a riqueza do Oriente tinha passado para outras bandeiras. Em poucos anos ele assistiu ao descalabro final: uma fatia importante do Brasil e de África passou para o controle dos holandeses, inimigos da coroa espanhola e poderosos quanto bastava para tomar conta da riqueza mais cobiçada da colônia esquecida por Camões, o açúcar do Brasil. A riqueza da Índia e do Brasil servia agora para satisfazer as ambições de fama e de poder de uma raça de excluídos, os judeus banidos do reino e refugiados em França e na Holanda, em cujas mãos estava, a partir de 1640, a salvação de um rei atrevido e de um reino sem futuro.
O jesuíta era mestiço, à imagem da miscigenação que caracterizava o reino de Portugal. Quando foi conhecida na Bahia a notícia da Restauração da monarquia portuguesa ele foi um dos escolhidos para a primeira viagem de um navio que se dirigiu para o reino afim de garantir ao novo monarca a fidelidade do vice-reino do Brasil. Ele que lutara pela defesa do Brasil contra a má administração e o roubo que enriquecia os administradores da colônia e a nobreza ociosa da península, assumiu a causa da independência do reino e fez desse projecto a sua bandeira, porque partilhava com outros letrados, artistas, poetas, teólogos e pregadores do seu tempo, a idéia de que o reino de Portugal tinha uma missão divina por cumprir, revelada pelo próprio Cristo ao nosso primeiro rei, escrita desde tempos imemoriais nos textos dos profetas bíblicos e anunciada nos tempos mais recentes por outros profetas populares e respeitados pelos seus vaticínios. Essa missão era a de um Império Universal de riqueza e de felicidade, incluindo todos os homens e todas as raças da terra, sem excluir ninguém, um novo e definitivo reino assente nas virtudes ancestrais dos portugueses e, porque não, governado por um soberano português. Seria o Quinto Império do mundo, o reino de Cristo consumado na terra, feito de todas as raças, de todas as nações do planeta.
Ao chegar a Portugal em Abril de 1641 o padre António Vieira tinha 33 anos. Saíra de Lisboa com 7 anos e toda a sua formação aconteceu na capital da colônia do Brasil. Regressava à sua terra de origem para propor uma nova visão da história do reino, muito mais atrevida e grandiosa que a dos seus contemporâneos, tão fabulosa que muito poucos a enxergavam. Ao longo de quase três décadas foi embaixador, missionário, arguido num processo do tribunal do Santo Ofício por delito de heresia, foi preso e condenado, sem nunca se afastar do seu rumo e dos seus objectivos, sempre impulsionado por um patriotismo que era uma quase loucura.
Fazia exactamente 100 anos da publicação do grande poema épico quando o padre António Vieira vivia em Roma, rodeado de admiradores, cardeais, príncipes, embaixadores e até uma rainha nórdica culta e excêntrica que o queria perto de si. Tinha 63 anos e sonhava ainda com o Quinto Império, apesar de desiludido com a fraqueza do seu soberano e o desleixo das virtudes do reino. Defendia mais uma vez o regresso dos mercadores judeus ao reino e acreditava que estava iminente o reencontro das tribos perdidas de Israel. Tanta profecia, tanto empenho, tanta ousadia passada, tudo comprometido com a mediocridade que invadia o reino, a corrupção que o minava, a má administração e a falta de coragem que destruía as ambições de um povo de costas voltadas para o seu destino. Pátria ingrata, não tomarás conta dos meus ossos!
A história de Portugal é feita de muitas miudezas e de alguns momentos de grandeza. Esses poucos momentos foram sublimes e definiram a identidade de um povo. Camões e Vieira representam dois momentos quase antagónicos dessa grandeza: um é o poeta da raça e da exclusão, outro o profeta da universalidade e da cidadania. Camões transmitiu auto-estima aos portugueses num dos momentos mais difíceis e críticos da história do reino, apelando à utopia de uma raça lusitana, nas virtudes da qual assentava a glória de ter desbravado os oceanos e chegado até às riquezas fabulosas do Oriente. Quando o poeta publicava Os Lusíadas, em 1573, a ideia de um império sonhado por Afonso de Albuquerque já se tinha desvanecido. Cinco anos depois, em Alcácer-Quibir, acontecia o desastre que mergulhava o reino na pior crise de toda a sua história. Vieira começou a pregar sessenta anos depois da publicação d’Os Lusíadas e uma das suas primeiras preocupações foi de se afastar do Sebastianismo e da seita que mergulhara no desespero e no fanatismo, à espera de um rei que se foi matar nas areias de África. O jesuíta apelava às mesmas virtudes ancestrais dos portugueses, mas eram para ele virtudes de um povo inteiro e não de uma minoria selecta. A Restauração do reino significava para o padre a recuperação do poder e da riqueza para construir sobre essa abundância o império do futuro, o reino de Cristo na terra, o Quinto Império.
O poeta mereceu um túmulo vistoso no templo da nossa glória, o padre não tem campa nem tumba, os seus ossos desapareceram. Juntos eles são a grande referência do poder da língua portuguesa no mundo, um Quinto Império realizado. No 10 de Junho, aniversário da morte de Camões, já não se festeja mais o dia de uma raça, mas sim o das comunidades diferenciadas que pelo mundo falam a língua portuguesa. Quando os que acabam de nascer estiverem na idade da sua maior capacidade produtiva, os falantes da língua portuguesa serão 500 milhões, cidadãos de países espalhados por quatro continentes e ligados por uma identidade comum que não contempla como referência nenhuma raça, nenhuma tribo, nenhuma ascendência privilegiada.
Pouca terra para nascer, o mundo inteiro para crescer e morrer – dizia Vieira.