Arquivo de Setembro 2010

Caminhos do Quinto Império

Setembro 16, 2010

Por Paulo Bonfim

 Um país que procura renegar seu passado perde pé no presente e não deixa acontecer o futuro. A frustração do povo brasileiro diante das “eruditas” comemorações do 5º centenário da descoberta do Brasil machucou o inconsciente coletivo de uma nação que se sabe herdeira de glórias que, embora contestadas, vivem em suas raízes. Afinal, quem descobriu o Brasil não foi Pedro Álvares Cabral. O Brasil foi descoberto pela Língua Portuguesa. Antes disso, sonhado nas flores do verde pinho que se transformariam no madeirame das futuras caravelas.

O Brasil veio crescendo no trovar de D. Diniz, neto de Afonso o Sábio e descendente de Eleonor de Aquitânia, filha de Guilherme de Aquitânia, em cujo sangue se espelhavam os tribunais de amor. Nossa certidão de nascimento foi um documento literário, a carta de Pero Vaz de Caminha; oficiando o batismo da terra descoberta encontramos um magistrado que se tornara frade franciscano, Frei Henrique de Coimbra; e nossa crisma foi o prefácio de Luís de Camões para a primeira História do Brasil, de seu amigo Pero de Magalhães Gandavo. O cérebro da esquadra cabralina chama-se Duarte Pacheco Pereira, o “Aquiles lusitano”, autor de Esmeraldo Situ Orbis, sábio e guerreiro personagem de Os Lusíadas.

Martim Afonso de Sousa e sua mulher Ana Pimentel estão presentes no Auto das Fadas, de Gil Vicente, e o primeiro bispo do Brasil, Pero Fernandes Sardinha, que havia sido professor de Teologia nas universidades de Paris, Salamanca e Coimbra, foi mestre de Inácio de Loyola. Sempre a Língua Portuguesa descobrindo o Brasil!

Mem de Sá, nosso terceiro Governador geral, era irmão do poeta Sá de Miranda, outro sábio do Renascimento. Na Guerra Holandesa encontramos em nosso litoral a figura ímpar de D. Francisco Manuel de Melo, e um século e meio depois, esse mesmo litoral  era visitado por outro poeta notável, Manuel Maria Barbosa du Bocage. No Século de Ouro de Espanha, Lope de Vega escreve “El Brasil Restituído”, uma de suas peças menos conhecidas hoje.

Do alto dos púlpitos, Padre Antônio Vieira prega suas cruzadas com a espada do idioma português. Na década de 20, o casamento de Antonio Ferro com Fernanda de Castro, tendo como padrinhos Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, tem um significado de manifesto da modernidade em São Paulo.

Em 1972 falamos em Portugal sobre um possível paralelo entre os moços de 22 e a geração dos “Vencidos da Vida”; entre as conferências do Cassino Lisbonense e a Semana de Arte Moderna do Teatro Municipal de São Paulo; entre Mário de Andrade e Antero de Quental. Ambos oscilando entre o sagrado e o profano, entre a religiosidade de suas raízes espirituais e o socialismo de suas antenas intelectuais. Ambos chefes de escola, misóginos e solitários, caminhando sob o fascínio da morte. Antero e Mário, duas vidas tragicamente ceifadas, que o tempo vai transformando em lenda.

O Brasil presente na obra de Ferreira de Castro e Vitorino Nemésio, o Brasil paixão de Jaime Cortesão (cuja filha Maria da Saudade foi casada com Murilo Mendes) e Fidelino de Figueiredo (cuja filha Helena foi casada com Antonio Soares Amora). Brasil, arquitetura de Ricardo severo e amor definitivo de Jorge de Sena!

Em São Paulo, no bandeirismo, surge os 11º canto dos Lusíadas. Em Porto Feliz a caravela de Cabral se transfigura em canoa monçoeira partindo daquela Sagres cabocla rumo ao coração irrevelado de uma terra onde o quinto império da língua portuguesa aguarda seu destino! 

Orelha do Livro “A economia em Pessoa/Verbetes contemporanes” de Gustavo Franco

Setembro 16, 2010

Por João Alves das Neves

Só tenho que me congratular com a publicação de A economia em Pessoa/Verbetes contemporâneos, organizada por Gustavo H. B. Franco, porque, ao lado de antologias gerais, passamos a ter um estudo realmente especializado sobre os textos pessoanos versando as questões econômicas. O leitor não deve se surpreender com o interesse do poeta pela economia; com efeito, o criador dos heterônimos não era tão jejuno como alguns pensam nesta área, pois freqüentou desde 1902 a Commercial School de Durban e manteve-se fiel ao tema quando, na autobiografia de 30-3-1935, se declarou apenas “tradutor” ou “correspondente de casas comerciais”, já que traduziu centenas de cartas e outros textos para mais de uma dezena de firmas: “O ser poeta e escritor – confessou – não constitui profissão, mas vocação.” E foi com esses trabalhos que ele pôde atender suas necessidades financeiras mais prementes até à morte, aos 47 anos.

Os textos de Fernando Pessoa sobre economia foram escritos, quase todos, em 1926, quando o poeta fundou e editou a Revista de Comércio e Contabilidade. Esses textos reapareceram depois nos volumes Fernando Pessoa/textos para dirigentes de empresas, de 1969, organizados por seu primo Eduardo Freitas da Costa, em Lisboa; Sociologia do comércio, organizado por Petrus; e Fernando Pessoa, o comércio e a publicidade, organização de Antônio Mega Ferreira, de 1986. Cremos que a última e mais ampla edição dos referidos textos foi a que fizemos em 1992 sob o título de Fernando Pessoa: estatização, monopólio, liberdade e outros estudos sobre economia e administração de empresas, da qual se fez nova publicação em Lisboa, pela Universitária Editora, em 2004.

Entretanto, a fortuna crítica dos estudos econômicos de Fernando Pessoa assume postura autorizada com esta nova coletânea, que faz uma interpretação competente e original dos conceitos pessoanos em torno dos temas “Estatização, monopólio, liberdade”, “A evolução do comércio”, “Contra as algemas do comércio”, “A essência do comércio”, “Projetos de concentração industrial”, “Organizar”, “Quando a lei estimula a corrupção”, “Os preceitos práticos de Henry Ford”, “As regras de vida” e “Conceitos e preconceitos”.

Em resumo, diremos que dispomos agora de uma visão crítica dos estudos econômicos de quem se julgava que fosse apenas Poeta. Quer dizer, doravante, ficamos rigorosamente bem informados, apesar dos cerca de 70 anos sobre os textos de Pessoa, que assume novas dimensões, a par das literárias. E o que ocorre com a Economia acontecerá também com a visão do escritor português sobre Política, Ocultismo e outros temas por ele sugeridos, nas múltiplas facetas de Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares e Raphael Baldaya, além de outros heterônimos de menor dimensão, mas que enriquecem ainda mais o escritor ortônimo Fernando António Nogueira Pessoa.

Camões e Vieira

Setembro 16, 2010

Por Antonio Abreu Freire

Um século separa estes dois gênios da língua e da saga portuguesa, mas foi um século de grandes e profundas mudanças na nossa história. Camões viveu no tempo da euforia da Índia e deixou-se embriagar pela idéia de um império que Afonso de Albuquerque tinha sonhado para Portugal. Depois de ter cantado a epopéia de uma raça de homens diferente das do resto do mundo, o poeta morreu na miséria, com lucidez suficiente para ver o reino despedaçado. Não foi no desastre de Alcácer-Quibir que se perdeu o reino, mas sim na ruinosa administração de D. João III ao longo de 36 anos e durante os anos que se seguiram à sua morte em 1557, quando a intolerância e a obsessão religiosa tomaram conta das mentalidades. Camões deixou em herança um poema que ficou como referência dos desejos mais profundos de uma nação: sonhos de vitórias, de riqueza e de poder de um povo pobre que nunca aceitou a sua fraqueza e sempre se iludiu com o seu destino.

O “ilustre peito lusitano” era o povo Lusíada, vocábulo criado pelo seu contemporâneo o grande humanista André de Resende (o autor do De Antiquitatibus Lusitaniae) para definir os descendentes de uma antiquíssima raça lusitana, referência ancestral de todos os heróis e de todos os artífices da epopéia marítima portuguesa. Porém, a utopia não tinha consistência, porque a tal raça lusitana nunca existiu. O povo do reino de Portugal sempre foi constituído por uma mescla étnica das mais diversas origens e até o nosso primeiro rei era um exemplo desta mistura circunstancial, filho de um imigrante francês e de uma bastarda galega. A Lusitânia foi um nome dado artificialmente a uma região administrativa do império romano e não contemplava qualquer unidade racial, nem linguística nem cultural. O nome escolhido para este pedaço de império nunca passou de uma fantasia poética e a história de um Luso parente do deus Baco apenas contemplava, talvez, o gosto característico dos ibéricos pelo vinho tinto e pelos prazeres mais sensuais da vida.

 

No poema de Camões a raça lusitana, predestinada por Deus para grandes feitos e glórias ímpares, era uma etnia diferenciada, autóctone e cristã; judeus, muçulmanos, africanos, povos nómadas atrevidos originários da Europa profunda e todos os seus descendentes que no termo de imensas caminhadas assentaram arraiais na península Ibérica, ficaram excluídos de tão preciosa tribo, apesar de terem sido os marinheiros, os soldados, os navegantes, os pilotos, os armadores e os comerciantes das naus da Índia. Os Lusíadas sempre foram um poema à glória dos feitos assombrosos e reais de gente destemida que os imaginou e realizou, mas esses feitos foram atribuídos a uma raça fictícia, para glória dos escolhidos, dos privilegiados e para exclusão dos outros.

Quando o padre António Vieira começou a pregar os seus primeiros sermões, nas igrejas de Salvador da Bahia, tinham-se passado 60 anos depois da publicação d’Os Lusíadas e da morte de André de Resende. Do império sonhado apenas sobravam retalhos. O jesuíta admirava Camões e teceu-lhe ao longo da vida numerosos elogios, partilhando com o poeta o patriotismo e a idéia do destino glorioso do reino. Também partilhava com o bardo a admiração pelo romantismo da mitologia clássica e não deixou de incluir nos seus Sermões algumas alusões aos velhos mitos que colavam uma identidade singular aos povos variados da península. Mas no seu tempo de jovem pregador reinava em Portugal uma dinastia estrangeira e o comércio da Índia viajava no bojo de naus cujo rumo não era Lisboa; a riqueza do Oriente tinha passado para outras bandeiras. Em poucos anos ele assistiu ao descalabro final: uma fatia importante do Brasil e de África passou para o controle dos holandeses, inimigos da coroa espanhola e poderosos quanto bastava para tomar conta da riqueza mais cobiçada da colônia esquecida por Camões, o açúcar do Brasil. A riqueza da Índia e do Brasil servia agora para satisfazer as ambições de fama e de poder de uma raça de excluídos, os judeus banidos do reino e refugiados em França e na Holanda, em cujas mãos estava, a partir de 1640, a salvação de um rei atrevido e de um reino sem futuro.

O jesuíta era mestiço, à imagem da miscigenação que caracterizava o reino de Portugal. Quando foi conhecida na Bahia a notícia da Restauração da monarquia portuguesa ele foi um dos escolhidos para a primeira viagem de um navio que se dirigiu para o reino afim de garantir ao novo monarca a fidelidade do vice-reino do Brasil. Ele que lutara pela defesa do Brasil contra a má administração e o roubo que enriquecia os administradores da colônia e a nobreza ociosa da península, assumiu a causa da independência do reino e fez desse projecto a sua bandeira, porque partilhava com outros letrados, artistas, poetas, teólogos e pregadores do seu tempo, a idéia de que o reino de Portugal tinha uma missão divina por cumprir, revelada pelo próprio Cristo ao nosso primeiro rei, escrita desde tempos imemoriais nos textos dos profetas bíblicos e anunciada nos tempos mais recentes por outros profetas populares e respeitados pelos seus vaticínios. Essa missão era a de um Império Universal de riqueza e de felicidade, incluindo todos os homens e todas as raças da terra, sem excluir ninguém, um novo e definitivo reino assente nas virtudes ancestrais dos portugueses e, porque não, governado por um soberano português. Seria o Quinto Império do mundo, o reino de Cristo consumado na terra, feito de todas as raças, de todas as nações do planeta.

Ao chegar a Portugal em Abril de 1641 o padre António Vieira tinha 33 anos. Saíra de Lisboa com 7 anos e toda a sua formação aconteceu na capital da colônia do Brasil. Regressava à sua terra de origem para propor uma nova visão da história do reino, muito mais atrevida e grandiosa que a dos seus contemporâneos, tão fabulosa que muito poucos a enxergavam. Ao longo de quase três décadas foi embaixador, missionário, arguido num processo do tribunal do Santo Ofício por delito de heresia, foi preso e condenado, sem nunca se afastar do seu rumo e dos seus objectivos, sempre impulsionado por um patriotismo que era uma quase loucura.

Fazia exactamente 100 anos da publicação do grande poema épico quando o padre António Vieira vivia em Roma, rodeado de admiradores, cardeais, príncipes, embaixadores e até uma rainha nórdica culta e excêntrica que o queria perto de si. Tinha 63 anos e sonhava ainda com o Quinto Império, apesar de desiludido com a fraqueza do seu soberano e o desleixo das virtudes do reino. Defendia mais uma vez o regresso dos mercadores judeus ao reino e acreditava que estava iminente o reencontro das tribos perdidas de Israel. Tanta profecia, tanto empenho, tanta ousadia passada, tudo comprometido com a mediocridade que invadia o reino, a corrupção que o minava, a má administração e a falta de coragem que destruía as ambições de um povo de costas voltadas para o seu destino. Pátria ingrata, não tomarás conta dos meus ossos!

A história de Portugal é feita de muitas miudezas e de alguns momentos de grandeza. Esses poucos momentos foram sublimes e definiram a identidade de um povo. Camões e Vieira representam dois momentos quase antagónicos dessa grandeza: um é o poeta da raça e da exclusão, outro o profeta da universalidade e da cidadania. Camões transmitiu auto-estima aos portugueses num dos momentos mais difíceis e críticos da história do reino, apelando à utopia de uma raça lusitana, nas virtudes da qual assentava a glória de ter desbravado os oceanos e chegado até às riquezas fabulosas do Oriente. Quando o poeta publicava Os Lusíadas, em 1573, a ideia de um império sonhado por Afonso de Albuquerque já se tinha desvanecido. Cinco anos depois, em Alcácer-Quibir, acontecia o desastre que mergulhava o reino na pior crise de toda a sua história. Vieira começou a pregar sessenta anos depois da publicação d’Os Lusíadas e uma das suas primeiras preocupações foi de se afastar do Sebastianismo e da seita que mergulhara no desespero e no fanatismo, à espera de um rei que se foi matar nas areias de África. O jesuíta apelava às mesmas virtudes ancestrais dos portugueses, mas eram para ele virtudes de um povo inteiro e não de uma minoria selecta. A Restauração do reino significava para o padre a recuperação do poder e da riqueza para construir sobre essa abundância o império do futuro, o  reino de Cristo na terra, o Quinto Império.

O poeta mereceu um túmulo vistoso no templo da nossa glória, o padre não tem campa nem tumba, os seus ossos desapareceram. Juntos eles são a grande referência do poder da língua portuguesa no mundo, um Quinto Império realizado. No 10 de Junho, aniversário da morte de Camões, já não se festeja mais o dia de uma raça, mas sim o das comunidades diferenciadas que pelo mundo falam a língua portuguesa. Quando os que acabam de nascer estiverem na idade da sua maior capacidade produtiva, os falantes da língua portuguesa serão 500 milhões, cidadãos de países espalhados por quatro continentes e ligados por uma identidade comum que não contempla como referência nenhuma raça, nenhuma tribo, nenhuma ascendência privilegiada.

Pouca terra para nascer, o mundo inteiro para crescer e morrer – dizia Vieira.

Um Poeta em São Paulo

Setembro 16, 2010

Por Cyro Mattos 

Em “Cantos da Metrópole”, o mineiro Samuel Penido retoma a dicção nítida formulada por versos ríspidos para revelar este lado da dor nos dias intermináveis da cidade pesada e escura. Vagueia sozinho com a metrópole dando-lhe guinadas na alma, carrega de tudo o peso e o vazio. Este é o sexto livro do poeta, que estreou com “A Difícil Messe” em 1963, conquistando de pronto opiniões favoráveis da crítica e o reconhecimento do leitor. Em 1979, o poeta de lirismo que fere como seta aguda obteve com “Caos e Nostalgia e Lances” o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras.

Neste pequeno grande livro, constituído de 32 cantos, São Paulo irrompe em série da paisagem crítica habitada pela criatura estafada a vida inteira. É indagada através de imagens dolorosas sobre o caos que tenta inutilmente organizar num campo de traumas onde vivem transeuntes como larvas. A cidade de ritmo crescente e superpopulação é marcada por versos de expressiva densidade, capazes de distinguir em subterrâneos e vias o leito impossível de conciliar o sono.

A malha disparada do tráfego insano, a guerra diária armada por dentes caninos e os gritos sem resposta são motivações que impelem o poeta a seguir na rota dilacerada, para colher aqui e ali rosas irreais que cortam como faca afiada. Anônimo no lúcido ritual que anda e desanda, o poeta constata e ausculta coisas inauditas por legiões neuróticas.

“Conheço essa cidade há séculos/ não sei se por dentro/ ou por fora./ Não é de hoje que a cheiro/ como cachorro, que esvoaço/ como besouro/ contra suas vidraças/ não é de hoje que nela me perco/ como estrangeiro”.

Poeta de linguagem precisa, necessária, no alcance da visibilidade que facilita a comunicação do discurso formado em cada gesto da existência, nos vários círculos do caos e do sonho, não é por acaso que suas imagens tendem para a confirmação de um lirismo atroz naquilo que é visto e o trespassa com sofrimento. Ajusta-se assim sua poesia de visões dilaceradas ao entendimento de Ítalo Calvino quando observa que:  “diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária : a observação do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento”.

Alguns desses cantos tendo a metrópole paulista como motivação poética, extraída de instantes que acontecem no anonimato de heróis comprimidos pela dura lei da vida, podem dar a idéia de fábula, forçando-nos pensar na problemática da existência por vias e arredios da cidade de ritmo que assusta. Nesse particular não deixam dúvida que são de poeta verdadeiro, chamado a traduzir os golpes que todos recebem na selva de pedra com sua gana canibal, morrendo de inanição no terminal que resvala sob um complexo de tensões, insídias, álibis, automatismo de gritos na contramão, que ora emerge do súbito rapto, ora das curvas onde pontilha sem bagagem o audaz andarilho. Uma pessoal beleza e uma técnica segura, tão do poeta, retiram o discurso da prosa poética com lições de moral, conferindo-lhe genuínos estados de espírito em versos dolorosamente carregados de observações, constatações da natureza humana atingida neste tempo assassinado por edifícios que “ tapam o brilho do céu”.

Samuel Penido, a exemplo de outros livros, possui em “Cantos da Metrópole” incrível precisão para expor o verso com uma nudez ferina, que corta algo duro de se conceber em sua fala absurda. A linguagem poética trabalhada com o esmero do artesão evidencia nesses cantos de densidade expressiva a metrópole sem face, sem nomes. Delata na relação homem e mundo o galope do medo, o escritório do indivíduo como cofre, o verde da árvore jogada no caminhão de lixo. Descobre a menina como objeto de horário integral, a viagem difícil na qual “ganhar a vida com unhas e dentes em maratona suicida” é uma partida que nunca chega.

Poeta de imagística depurada, apanhando o homem coberto de lesões, a desfilar na passarela o mais notório dos vazios, bem sabe da ausência da comunhão em versos que comportam a aproximação com a literatura mais condigna. Se literatura existe para equilibrar o homem entre os vazios, é “linguagem carregada de significado” como concebe Ezra Pound, na poética de Samuel Penido transmite sensações e estímulos até o máximo como formas solidárias, graus de compreensão entre os humanos para a valorização da vida, tão desumanizada nos tempos de hoje, principalmente onde o olhar do outro assusta como lâmina possessa à nossa espera.

Detecta-se ainda nestes “Cantos da Metrópole” uma linha de continuidade poética voltada para o ser humano incrustado no rotino mundo da grande cidade, de tantos atritos, desvairismos, corredores e sombras. Oportuno é filiar o poeta Samuel Penido à família dos que se inspiram e transpiram o desengano urbano da megalópole, com esta louca vida baralhando tormentos, promiscuidade de todos os dias, ao protagonizar o drama. Cito aqui como exemplo Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Reynaldo Valinho Alvarez. Os dois primeiros vozes maiores de nossa poesia, o último transcende real brasileira verdade ao eleger como tema a “ cidade em grito” feita ofensa em cada gesto da existência.

Um adendo: Samuel Penido integrou várias vezes a diretoria da União Brasileira de Escriores, Seção de Paulo, com dignidade e eficiência. Faleceu em 28 de maio deste ano, na capital paulista.

Referências Bibliográficas:
“Cantos da Metrópole”, Samuel Penido, Editora do Escritor, São Paulo, 1984.
“Seis Propostas para o Próximo Milênio”, Ítalo Calvino, Companhia das Letras, São Paulo, 1999.

“ABC da Literatura”, Ezra Pound, Cultrix, São Paulo, 1990.