O Seu a seu dono Pessoa “desapossado” de Coelho Pacheco

“Para Além de Outro Oceano”, atribuído a um dos sub-heterónimos do genial poeta, é da autoria de um dos “putos” do Orfeu, de que se descobriram agora outros poemas inéditos, aqui revelados com este texto de uma das prestigiosas e fecundas especialistas pessoanas.

(texto retirado do Jornal de Letras – 20 de Maio de 2011)

Por Teresa Rita Lopes

Sabia que António Ferro e Almada Negreiros eram assim chamados, de “putos” do Orfeu (o primeiro, sete anos mais novo que Pessoa, com vinte anos, e Almada, cinco, com vinte e dois. Ferro terá figurado como “editor” por ser ainda menor e, portanto, inimputável, em caso de desaguisados com a justiça…). Não sabia é que havia outro, José Coelho de Jesus Pacheco, com vinte e um anos. Vou contar como finalmente vim a saber quem ele realmente foi.

Conheci C. Pacheco, assim indicado, e o poema “Para Além d’Outro Oceano” através da Obra Poética de Fernando Pessoa que, em1960, aestimada pessoana, pioneira nestas lides, Maria Aliete Galhós, publicou na editora Aguilar, no Brasil. Indica ela, em nota, que o poema se destinava ao nº 3 do Orfeu, e esclarece que o poema está dedicado “à memória de Alberto Caeiro” e que, numa nota de Pessoa para a paginação de Orfeu 3, que chegou a ser composto, o autor do poema é Coelho Pacheco.

Comenta ainda que “Pacheco é um episódico heterónimo de Fernando Pessoa de quem se não conhece mais nenhuma produção.” E pronto, ficámos a braços com este “episódico heterónimo” até aos nossos dias.

No volume I das Obras de Fernando Pessoa, recolha editada em 1986, por António Quadros e Dalila Pereira da Costa, encontramos no capítulo “A poesia de um sub-heterónimo” esse mesmo poema, com uma nota de rodapé esclarecendo “não é conhecida a poesia deste sub-heterónimo, tendo-se já aventado que poderia tratar-se de uma pessoa real, tanto mais que a família Coelho Pacheco era bem conhecidaem Lisboa. Masse assim fosse o autor não se teria já acusado?” (Como, se morrera em 1951, antes da publicação do poema?)

Eu sabia que Pedro da Silveira aventava oralmente a tal hipótese que António Quadros refere, ou fazia mesmo a afirmação de que o poema em questão era de um tal Coelho Pacheco que existira, sim senhor, e tinha um stand de automóveis na rua Braamcamp.

Quando uma minha parceira de lides pessoanas, a Professora Manuela Parreira da Silva, ao editar a correspondência reunida das cartas de e para Pessoa (Fernando Pessoa. Correspondência Inédita, Lisboa, Livros Horizonte, 1996) encontrou uma assinada Coelho Pacheco em que agradece a oferta de Mensagem e recorda saudosamente os tempos de Orfeu, essa atribuição a Pessoa tornou-se muito mais problemática, e tanto a Manuela como eu muito nos inclinámos a retirá-la. Tanto mais que no decorrer da pesquisa para o meu Pessoa por Conhecer, publicado em 1990, e para o Pessoa Inédito (simultaneamente preparado, embora apenas editado em 1993) deparávamos com uma colaboração de Coelho Pacheco, “um poema interseccionista”, “Eu sem mim”, prevista por Pessoa no plano de uma revista que então preparava com Mário de Sá-Carneiro, Europa, que finalmente viria a chamar-se Orfeu e de um plano para Orpheu 3 e 4 (pessoa Inédito p. 255)em que José Coelho Pacheco assim figurava, por extenso, com colaboração prevista de 8 paginas, tantas quantas as destinadas a Fernando Pessoa! Mas não havia provas palpáveis nem para a atribuição nem para a “desatribuição”.

Pus-me em campo e soube, há já uns anos, da existência de uma filha de Coelho Pacheco, Maria Helena Pacheco Figueiroa Rego, que me recebeu muito simpaticamente mas me desanimou por não ter conhecimento dessa faceta literária do empresário da indústria automobilística que era seu pai. Tinha apenas em seu poder uns versos brincalhões dedicados à mulher, que me não autorizavam a reconhecer-lhe faculdades poéticas.

Manuela Parreira da Silva fez recentemente o ponto da situação, para o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, coordenação de Fernando Cabral Martins, numa excelente recensão sobre José Coelho Pacheco, referindo mesmo que Maria Aliete Galhós, num artigo para As Mãos da Escrita, edição da Biblioteca Nacional, de 2007, declara que foi um erro atribuir a Pessoa “Para Além d’Oceano”. Mas a verdade é que continuávamos sem provas para a sua atribuição a José Coelho Pacheco. E Manuela Parreira da Silva termina melancolicamente a recensão: “A dúvida vai, certamente, persistir.”

Mas eis senão quando, há uns dias, tive a alegre surpresa de ter nas mãos o original manuscrito do poema “Para Além d’Outro Oceano”, assim escrito pelo seu autor, José Coelho Pacheco, o avô de Ana Rita Palmeirim, que me procurou para mo mostrar! Foi uma fulgurante surpresa! Por se poder fazer finalmente justiça a esse apagado comparsa das aventuras órficas que enveredara pelo caminho dos negócios sem deixar de ser amante das artes e praticante da escrita literária. (Assim fez também Rimbaud, mas este tem o seu lugar na história da literatura francesa…)

Poderia dizer-se desse José de Jesus Coelho Pacheco, que foi proprietário de um stand de automóveis na Rua Braamcamp, nº 92, em Lisboa, que tinha realizado o sonho de Álvaro de Campos: “Ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!”. Campos sensacionista proclamava, à maneira futurista, que o maior poeta não era o que escrevia versos mas o que dava aos seus actos o alcance e o valor de um poema.

Na carta que escreve a Pessoa, a 20.2.1935 (ver obra referida de Manuela Parreira da Silva), a agradecer a Mensagem, Coelho Pacheco diz-lhe que esse livro lhe dera uma alegria maior do que teria se recebesse, da sua fábrica, um automóvel novo! E recorda os velhos tempos do Orfeu e da Renascença. Do que me contou Ana Rita Palmeirim (uma das oito netas de JCP) depreendo que o avô sempre foi um esteta e que apreciava as linhas dos automóveis que encomendava para o seu stand com o mesmo gosto que punha a desenhar pequenos móveis para a casa, movido por uma vocação que hoje diríamos para o design.

Além do que é indubitavelmente o rascunho manuscrito do poema “Para Além d’Outro Oceano”, Ana Rita levou-me, na velha pasta de couro do avô, com as inicias dele gravadas, outros poemas. Um deles, “Delirando…” é de 10.3.1914, dois dias depois desse que Pessoa apelidou de “Dia Triunfal”, em que os heterónimos se lhe teriam manifestado – o que, diga-se de passagem, era encenação sua, porque o exame dos manuscritos revela que, nesse dia, só Alberto Caeiro se manifestou, e apenas com dois poemas.

Delirando…

Por José Coelho Pacheco

Como um cadáver frio no mármore gelado

Da mesa numa escola – a imagem não importa –

Hirta e roxa do frio, vejo a minhalma morta

Liberta do meu corpo exangue e macerado…

 

Vejo-a silente e negra e envolve-a de mistério

Num arrepio da carne – um arrepio que assombra

Um lívido sudário – lívido de sombra –

Na campa vaga dum longínquo cemitério…

 

E vejo – sim, diviso – um vulto maquilado

Um vulto de histrião, leproso e gangrenado

Dando, num arquejar de todo o corpo seu,

 

À lividez sangrenta da minhalma um beijo…

E eu sofro muito…eu sofro muito quando o vejo

Porque esse corpo – horror! – só pode ser o meu.

Pessoa já tinha constituído, com Mário de Sá-Carneiro, uma pequena cotterie, como ele gostava de dizer, a que, provavelmente, pertenceria o jovem José Coelho Pacheco (então com vinte anos) que a ela se refere nostalgicamente, na referida carta. Por essa altura forneceu ele colaboração, em prosa, à revista Renascença, em que figura como editor, eem que Pessoa publicou o poema, “Pauis…”, que daria o nome à dita cotterie: Paulismo. Outro jovem, com vinte anos, Carvalho Mourão, amigo sobretudo de Mário de Sá-Carneiro, divide com Coelho Pacheco a direcção e dinamização dessa revista, militantemente paúlica.

Como colaboração literária, Coelho Pacheco apenas publicou, que eu saiba, mais uma pequena narrativa no Correio Ilustrado, de 1.3.1916, mas editou, em 1937, pela Bertrand, uma tradução de um romance de Jules Verne, Cidade Aérea, que preparava desde os 17 anos (já então a prometera a uma editora de Lisboa, que lhe escreveu nesse sentido. Ana Rita mostrou-me a carta da editora, de 1912 – ano em que frequentava o Instituto Superior Técnico).

Outra informação importante que obtive da família: José de Jesus Coelho Pacheco era sobrinho, por parte da Mãe, de um amigo de Pessoa, Geraldo Coelho de Jesus, engenheiro de minas, director do jornal Acção, de inspiração sidonista, de que Pessoa foi o principal obreiro e colaborador, e de que saíram quatro números, entre 1-5-1919 e 27.2.1920. Foi também sócio de Pessoa na empresa Olisipo, por este criada em 1921, extinta em 1923, com ambiciosos projectos, sobretudo editoriais e de expansão, no estrangeiro, da cultura e dos produtos nacionais.

Tenho a intenção de pedir a Ana Rita Palmeirim que, de parceria com alguém do Instituto que oriento (que dá pelo nome de Estudos sobre o Modernismo) se dedique a lançar mais luz sobre a interessante vida e personalidade de José Coelho Pacheco. Para já, mais alguns apontamentos, fornecidos por ela e por sua Mãe, Maria da Luz Coelho Pacheco, a quem igualmente agradeço.

José de Jesus Coelho Pacheco nasceu em Lisboa, a 27.5.1894, conforme reza o Bilhete de Identidade aqui reproduzido, e aí morreu a 15.11.1951. Frequentou o Instituto Superior Técnico, mas foi chamado para cumprir o serviço militar, pelo que teve que abandonar o curso. Diz-me Ana Rita que ia a caminho da Grande Guerra quando ela felizmente terminou.

Na dita “pasta” (não se poderá, no caso de Coelho Pacheco, falar de “arca” mas tão só de pasta…) encontram-se vários manuscritos e até dactiloscritos, de “Para Além d’Outro Oceano”, que, como se pode ver pelo conhecido texto publicado, é constituído por várias unidades temáticas que poderiam ter recebido números, como os quarenta e nove poemas do “Guardador de Rebanhos”. Coelho Pacheco não o fez mas deve-as ter separado no texto definitivo que forneceu para Orfeu 3, porque assim nos chegaram.

Repare-se, contudo, que a primeira unidade (aqui reproduzida em fac-simile) comunga do que Pessoa diz, numa carta de 1914 ao amigo João Lebre e Lima (publicada por Manuela Parreira da Silva em Correspondência (1905-1922), Assírio & Alvim, 1999), ser o “estilo alheio”, praticado pelos rapazes do grupo – isto é, inspirado no paúlico trecho “Na Floresta do Alheamento”, publicado em 1913, na Águia – embora a unidade seguinte lembre claramente Alberto Caeiro. Outras unidades remetem para um poema que Pessoa irá publicar no jornal O Heraldo, de Faro, “A Casa Branca Nau Preta” (1916), assinado Fernando Pessoa mas a meio caminho entre Pessoa e Campos (tem sido tradicionalmente atribuído a Campos, atendendo à sua exterioridade formal). Acontece, assim, que Coelho Pacheco nos aparece como um fiel discípulo do Pessoa nas suas diferentes máscaras: na de poeta paúlico, na de Caeiro e até na de Campos.

Um dos poemas inéditos da “pasta”, no estilo dos que compõem o “Para Além d’Outro Oceano” o que começa “A idéia que tenho de espaço”, é um monologo de quem pensa em voz alta, sem a rédea do bom seno e da gramática, lembrando Alberto Caeiro, que rejeita “o corredor que vai do pensamento para as palavras”, mas, ao mesmo tempo, Álvaro de Campos, que caracterizou os seus monólogos como os de “um parvo que estivesse com febre”. (Repete-se no titulo do poema de José Coelho Pacheco, também em caixa publicado, “Delirando…”) Se ele o entregasse para a publicação, imagino que introduziria espaços, como fez com “Para Alem d’Outro Oceano”, entre as diferentes unidades temáticas, que aqui também existem mas se seguem sem interrupções assinaladas.

 A idéia que tenho de espaço

 Por José Coelho Pacheco

 A ideia que tenho de espaço

É a de que espaço não pode ter uma ideia que o traduza

E não quero supor que ele seja imaterial

Porque então eu havia de o compreender

É muito doloroso para mim

Ter de utilizar-me das palavras de toda a gente

Sinto-me muito feliz quando traço no papel

Rabiscos ilegíveis que ninguém perceba

Eu nunca procurei saber se eu os entendo

Nem preciso de saber porque me basta

E sinto-me feliz dos outros os não saberem ler

Quando escrevo com letras, com estas letras,

Lembra-me sempre um obreiro de génio

Que tivesse que ir construir nas oficinas alheias

as suas máquinas feitas para destinos desconhecidos

E deste modo sinto muitas vezes que me faltam maneiras

de dizer ou expressões

Como a ele lhe poderiam faltar as melhores ferramentas.

Às vezes tenho ideias tão pequenas que as não compreendo

e uso fugir-lhes. Como se pode supor que uma ideia seja estranha

Se as ideias só podem variar no tamanho

Há uma coisa só que eu queria saber como é

E de que o ignorá-la me faz oscilar

Ela é esta ignorância em que sou

Do modo como há ligações entre o pensar eu as só minhas ideias

E o aparecerem elas escritas como se fossem de outra pessoa

 Coelho Pacheco é, neste texto, como em “Para Além d’Outro Oceano”, discípulo simultaneamente de Caeiro e de Campos pelo uso do verso livre, incomum na época, e pela destruição da fronteira entre a poesia e a prosa. E é nisto que ele e os seus mestres em Modernismo, Caeiro e Campos, são verdadeiramente inovadores.

 Mas Coelho Pacheco também sabe poetar com total respeito elas contenções impostas pelo soneto, como mostra o já referido poema, “Delirando” de 10.3.1914, e um outro (mais próximo do Paulismo e de um soneto manuscrito de Pessoa, de “Passos da Cruz”), conservado juntamente com ele, “Náufrago”.

 Náufrago

 Por José Coelho Pacheco

Neste espantoso e surdo mar em que me agito

Bem quero soçobrar…Em fúria cega e tanta

Quando eu lutando em vão me afundo e precipito

Logo uma vaga enorme e torva me alevanta…

Tolda-me o espaço a lucidez…e se medito

Toda a razão se desvanece e se quebranta;

Fito os olhos no vago, e cego…e se os desfito

Logo a fascinação da luz se desencanta…

Se a espaços a distingo, a forma que se esfuma

É a do corpo meu, boiando sobre o mar

Já roxo e mutilado, envolto pela bruma…

E a Dúvida persiste…as ondas agitadas

Amortalham de espuma o corpo, que a boiar

Fita no espaço ainda as órbitas vazadas…

Este, datado de um ano depois – 11 de Março de 1915 – evidencia mais afinidades com a escola que Pessoa e Sá-Carneiro tentavam implantar, o dito Paulismo – e com o poema manuscrito de Pessoa, que juntamente se reproduz (traz a indicação “Dois sonetos”, aparentemente por fazer parte de um díptico que Pessoa terá oferecido ao amigo, mas de que apenas um, o que me foi mostrado, consta da referida pasta de José Coelho Pacheco.

“Naufrago” apresenta, curiosamente, uma clara afinidade de assunto com o anterior “Delirando”: o poeta vê-se, de fora do corpo, ser um corpoem decomposição. São, tanto um como o outro, uma visão de pesadelo.

Mas não é hoje, aqui, o lugar para apreciar mais longamente a poesia de José Coelho Pacheco. O intuito deste artigo é, sobretudo, o de dar o seu a seu dono: desapossar Pessoa de um poema que há dezenas de anos integra a sua obra e entregá-lo ao seu verdadeiro autor, José Coelho Pacheco. Confesso que isso é para mim motivo de regozijo: Pessoa não fica mais pobre por isso, e vemos assim surgir do anonimato dos seus jovens parceiros de lides e entusiasmos modernistas uma presença que este miniespólio nos vem dar a conhecer.

Bem haja, Ana Rita Palmeirim, por nos ter dado a por nos ter dado a conhecer José Coelho Pacheco, um jovem e talentoso discípulo de Pessoa, que ele seguramente acarinhou e guiou nos caminhos da arte.

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