A Língua, a pátria possível

A Língua, a pátria possível

por Dalila Teles Veras

 

Após 45 anos residindo no Brasil, para onde emigrei aos 11 anos , com meus pais e irmãos , optei por solicitar às autoridades brasileiras os meus direitos políticos , ou seja, a chamada Igualdade de Direitos ou “ dupla cidadania ”. Vários motivos levaram-se a tomar tal decisão : além de marido e três filhas brasileiras, a constante e ativa participação na vida cultural e política da cidade onde resido, são alguns deles. De há muito um dilema de identidade : aportada no Brasil ainda menina e tendo aqui completado minha escolaridade , um dia optei pela palavra como ofício . A língua , sabe-se, é a mesma , mas a sintaxe e a práxis cultural não . Impossível ser uma escritora portuguesa escrevendo como brasileira . Apazigüei-me, considerando-me uma escritora brasileira que nasceu em Portugal.

Entretanto, a burocracia oficial fazia questão de me lembrar a condição de estrangeira, ou seja, o meu documento de identidade (RNE – Registro Nacional de Estrangeiros), onde constava um carimbo oficial de “residência permanente”, precisava, paradoxalmente, ser renovado periodicamente. Pior, o tal documento obrigava-me (e a todos os “estrangeiros” aqui residentes “definitivamente”), a cada vez que me ausentava do país, em viagem de turismo ou trabalho, a enfrentar as longas e humilhantes filas dos balcões destinados aos “estrangeiros”, enquanto meu marido e minhas filhas seguiam pela saída dos “brasileiros”. Mesmo residindo há quase meio século no Brasil, eu continuava “estrangeira”.  “Estrangeiro aqui como em toda a parte”, habitante de “pátria incerta” como dizia o poeta Fernando Pessoa. Nem de lá, nem de cá e, neste caso, a língua me servia apenas de teto, faltava-me verdadeiramente uma pátria, na qual pudesse exercer efetivamente minha cidadania.

Após quase um ano de cópias e mais cópias de certidões e documentos, idas ao Consulado e à Polícia Federal, eis que, finalmente, em fevereiro de 2002, fiz-me portadora feliz de um “certificado de igualdade e de outorga do gozo de direitos políticos”, assinado pela Senhora Chefe da Divisão de Nacionalidade e Naturalização – Delegação de Competência do Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, Departamento de Estrangeiros, em Brasília e, a seguir, de uma “Carteira de Identidade”, verdinha, igualzinha à dos nativos, com uma ressalva apenas, a da naturalidade portuguesa. Ato contínuo, cuidei de tirar o meu “título de eleitor” para, enfim, exercer minha cidadania (quase) plena.

Recentemente, com meu passaporte português vencido e sabedora de que filhos de portugueses nascidos e residentes no Brasil podem obter, além do seu passaporte brasileiro, também o passaporte português, dirigi-me ao posto da Polícia Federal para solicitar o meu passaporte brasileiro, entendendo eu que, de posse de meus “direitos políticos”, não mais passaria pelas humilhantes filas de “estrangeiros”. Qual não foi a minha surpresa ao ser informada de que não tenho tal direito, devo continuar com meu passaporte português, apenas e tão somente. Lá está um item nas regras para obtenção de passaporte: “A Igualdade de Direitos concedida a portugueses não é suficiente para obtenção de Passaporte, sendo necessária a naturalização”.

Sem saber ao certo, novamente, a que pátria pertenço, lá fui eu enfrentar a burocracia do Consulado Português que, agora, instalado numa mansão na parte nobre da cidade, e munido de “alta” tecnologia, não mais recebe pessoalmente os cidadãos portugueses sem que os mesmo sejam “convocados”. Os pedidos de obtenção ou renovação dos documentos devem ser feitos pela Internet, os documentos enviados pelo correio e, após marcado o dia e a hora para assinatura do documento (´”não será permitido atraso, informam, muito menos acompanhantes”). É preciso passar por uma portaria que mais parece a de um presídio, apresentar ao porteiro documentos originais, e, depois, ser confinado numa saleta minúscula, com bancos duros, de metal frio e desconfortável, enfrentar fila (!!!), ainda que todos ali tenham sido convocados com “hora marcada”.

Mais uma vez, senti na pele que, para mim, não há pátria, apenas o teto da língua, que, neste caso, só se comunica virtualmente, pois ali, naquela casa que deveria ser a casa dos portugueses residentes em São Paulo, além dos porteiros, não se cruza com uma só alma do corpo diplomático nem da administração, apenas com aqueles que estão, paradoxalmente, na “fila”. Não há guichês de informações, balcões, escrivaninhas, nada. Uma máquina de café quebrada simula as boas vindas, os bancos duros, mais nada. Uma porta que se abre ocasionalmente e uma voz impessoal, invisível e metálica, que chama pelo nome as pessoas à espera, uma de cada vez, para assinarem o documento que será, posteriormente, remetido pelo correio. Cidadãos não são, ao que parece, bem-vindos ali pessoalmente. O Consulado só para diplomatas e suas festas galantes.

Sairei do país nos próximos dias e, quando voltar, passarei pela porta destinada aos nativos e não aceitarei que me barrem, usarei o mais válido dos argumentos: estou assegurada pela pátria comum, a única, a língua portuguesa.

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